Pepe e Daomé | 2024

Pepe e Daomé | 2024

A Voz como Fio Condutor em Dois Documentários Surrealistas

por Thainá Carvalho

Em 2009, dois caçadores alemães mataram um hipopótamo na Colômbia. A morte fez parte de um plano do governo colombiano para controle populacional desses mamíferos que estão se reproduzindo no principal rio do país após alguns espécimes se evadirem da fazenda-zoológico Nápoles, construída pelo famoso traficante Pablo Escobar. O filme Pepe, de Nelson Carlos de Los Santos Arias, retrata essa história como uma docuficção, embora seu gênero seja de difícil classificação. Utilizando-se de imagens inventadas, cenas roteirizadas e registros de hipopótamos em seu habitat “natural”, o filme é narrado em off pela voz de Pepe, nome dado pela mídia ao animal caçado, que começa narrando sua própria morte e revisita toda a jornada coletiva da sua migração individual.

Daomé, de Mati Diop, se volta à mais recente viagem de 26 artefatos pertencentes ao reino do Daomé. Roubados pela França na época da colonização, os bens foram devolvidos em 2021 pelo governo  europeu ao Benim, país africano que atualmente compreende em seu território o Daomé. Na primeira parte do documentário, vemos uma estátua do Rei Ghezo ganhar vida através de uma voz em off que questiona seu lugar e sua própria existência, enxergando de forma difusa seu passado e seu caminho. Enquanto protagonista, vemos a jornada dessa estátua a partir de um museu onde pessoas majoritariamente brancas e bem equipadas trabalham até a sua recepção festiva em um país que carrega, literalmente, o peso desse gesto político devolutivo nas costas. Na segunda metade do filme, assistimos aos registros de falas de beninenses, em sua maioria jovens, que participam de um debate público sobre os diversos significados culturais, políticos e sociais do retorno dos artefatos ao país. 

O fio condutor dos dois documentários é a voz, e consequentemente sua linguagem, concedida de forma animista a seres não humanos cujas vidas giram em torno de migrações forçadas. A voz de Pepe, por exemplo, transita entre o espanhol, o africâner e o Mbukushu, língua de origem bantu. O detalhe? Pepe foi o primeiro e último hipopótamo a morrer nas Américas, de forma que os idiomas falados por ele traçam na verdade uma genealogia da linguagem que ultrapassa as fronteiras políticas do território em um mundo movimentado por constantes migrações. O filme demonstra de forma belíssima como a linguagem, sendo ancestral, constrói a vivência do indivíduo. Em uma cena da suposta partida de Pepe da África, onde vemos um barco de pequeno porte cruzar um imenso oceano, a voz de Pepe questiona seu passado e seu futuro, transicionando do africâner para o espanhol no meio de uma mesma sentença. Enquanto aqui a linguagem parece, forçosamente, se expandir, em Daomé, vemos a triste consequência da opressão colonial através do idioma imposto pelo país dominante. Em meio a discussões acaloradas sobre o conceito de identidade, uma mulher beninense afirma com tristeza, em francês, que não sabe se expressar no seu próprio idioma.

Os detalhes das vozes contribuem em tudo para o surrealismo e, paradoxalmente, a verossimilhança dos dois longas. A voz de Pepe é uma mistura incrível de vocalizações humanas dos sons emitidos por hipopótamos e idiomas diversos, permeada por uma guturalização e uma lentidão calculadas que garantem que o espectador se envolva com a tradicional contação de história. No caso de Daomé, a voz da estátua tem um timbre agênero e parece compreender um conjunto de narradores diferentes, evocando a divindade e a antiguidade de quem fala, em um contraste chocante com as cenas de um mundo moderno que parece não saber bem como reverenciar esse artefato. Ainda no debate público que todo o país parou para ouvir em pequenos rádios nas praças, duas jovens discutiram se o lugar de retorno desses bens míticos deveria compreender uma adoração religiosa ou cultural. Um detalhe muito interessante do documentário de Diop é que ele se utiliza muito mais de questionamentos do que de fatos para apresentar o atual cenário social do Benim. 

Ao longo de finais bem executados e tristes, Pepe e Daomé destacam suas vozes tão especiais para refletir sobre o que é início e o que é conclusão em um mundo que muda constantemente, onde humanos, bichos e objetos não parecem estar onde deveriam estar. Em uma realidade assim, verdades como hipopótamos nadando no rio Magdalena ou estátuas retornando para casa parecem mesmo surreais e, não à toa, se transformam em documentários e ficções.

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