Um Completo Desconhecido | 2025

“Uma boa música só pode fazer o bem.” Esperançosas, as palavras ditas por Pete Seegers (Edward Norton) durante seu julgamento sob acusação de comunismo e antipatriotismo são seguidas de uma canção tocada em plena corte estadunidense, em tom comovente que tenta convencer que, ao seu modo, ele é tão patriota quanto aqueles que o acusam. Coroando sua aura de bom moço, encontraremos o músico folk cantando a um adoecido e hospitalizado Woody Guthrie (Scoot McNairy), músico-inspiração de Bob Dylan (Timothée Chalamet) e a quem ele procurará e que o conectará com Seegers, responsável por alavancar sua carreira. Um Completo Desconhecido, dirigido por James Mangold, que integrou a Special Gala da 75ª Berlinale e foi indicado a 8 estatuetas do Oscar 2025, atribui papéis bem delineados e típicos das autobiografias musicais: Seegers funcionará como uma espécie de guia paternal de Dylan, o músico desconhecido que ascenderá para tornar-se uma figura famosa e polêmica, cercado de mulheres que o desejam e sofrem por ele.
A trajetória de amadurecimento, queda e aprendizado do protagonista é redonda e definida. Um Completo Desconhecido vai seguir a trajetória de Bob Dylan a partir do anonimato, dando saltos inteligentes para fases específicas de sua carreira sem perder tempo em ater-se a detalhes da linha temporal, mas focando, principalmente, na insistência do músico em não ceder às tendências e transigir convenções musicais, e o filme utiliza-se das canções mais conhecidas para delimitar os acontecimentos, bem como no triângulo amoroso mantido por uma vida entre ele, Sylvie Russo (Elle Fanning) e Joan Baez (Monica Barbaro).
Um Completo Desconhecido é um projeto que já nasce com o apelo e a expectativa de escalar Timothée Chalamet para viver aquele que é um dos maiores músicos da história, peso que foi confirmado pela temporada de premiações, culminando com a (segunda) indicação do ator ao Oscar 2025. Chalamet vem, desde sua primeira indicação à estatueta por Me Chame Pelo Seu Nome, de Luca Guadagnino, acertando a escolha de seus papéis para assumir, atualmente, uma cadeira de relevância incontestável. Aqui, ele não some para avocar, completamente, a persona de Dylan, e Chalamet é competente o suficiente para não tornar isso um problema. Ele se equilibra bem entre não ceder a maneirismos e respeitar o músico como pessoa introspectiva que é, conseguindo, ainda, estabelecer conexões e boa química com os demais personagens (o elenco é, de fato, de alto nível), o que muito enriquece sua performance, tendo em vista a facilidade que seria deixar seu personagem brilhar sozinho. Ele tem seu brilho, mas não ofusca os demais, permitindo espaço para que, principalmente, Edward Norton e Monica Barbaro sejam tão ou até mais interessantes do que seu próprio personagem (isso vale, principalmente, para a figura de Joan Baez vivida por Barbaro e os belos duetos dela com Dylan/Chalamet).
O que parece dar a Um Completo Desconhecido um status de destaque no gênero é o modo como ele deixa-se fluir pelo feeling musical – as canções parecem ditar o tom do filme, sem que ele pause para que o número musical ocupe plenamente seu espaço (recurso muito e ordinariamente utilizado em Bohemian Rhapsody). Há alma na música, mas há, principalmente, as pessoas que as compõem, e o diretor escurece a luz no entorno dos personagens, quando em palco, para valorizar suas expressões sem tornar tudo um grande espetáculo. As lutas políticas da época permanecem como pano de fundo dramático sem perder sua importância, já que impressas nas composições de Dylan e em suas inspirações musicais (a segregação racial estadunidense, a black music e o gospel vão se refletir em suas obras).
Se os duetos entre Joan Baez (Barbaro) e Bob Dylan (Chalamet) constituem quiçá os melhores e mais musicalmente emotivos (nunca apelativos) momentos do longa, e a química entre os atores é deliciosa, é porque nem Mangold nem Barbaro permitiram que Baez se tornasse pequena diante de Dylan. Pelo contrário, não só ela já possui uma carreira consolidada e já é famosa quando conhece o músico, como soa sempre mais madura, mais pé-no-chão e mais à frente que ele. Por outro lado, é um tanto incômoda a forma como, à exceção de Baez, os demais interesses amorosos do protagonista sejam um tanto opacos e tenham suas tramas exclusivamente condicionadas a ele. A personagem de Elle Fanning só faz sofrer pelo amado, Becka (Laura Kariuki), seu caso de uma noite, é desprezada e dispensada rapidamente, desempenhando um papel quase que figurativo. É óbvio que tais atitudes vão demonstrar uma certa arrogância e mudança de comportamento do protagonista que naturalmente a fama trouxe consigo (há o Eu de antes e o Eu de depois, refletido, inclusive, no figurino que vai se tornando mais escuro e pela inserção do típico óculos escuro), mas, principalmente nos dias de hoje, tal representação feminina faz parte de um protocolo do passado que precisa ser, e muito, revisto.
James Mangold torna a direção mais movimentada a partir da chegada do novo “Eu” de Bob Dylan – o da fama. Acompanhada de uma trilha sonora de jazz de improviso, tal fase vai representar a queda e o aprendizado do personagem, que passa a agir, para além da arrogância já mencionada, com desestima perante Pete Seegers (Norton). Este, mais velho, apresentador de TV de um programa educativo chamado Rainbow Cast e organizador de festivais de música folk (da qual Dylan começa a se afastar), vai se transformando cada vez mais na figura paternal que já prevíamos que ele se tornaria – e que vai ser responsável, portanto, por trazer a dignidade do protagonista de volta aos eixos. Há uma cena, em específico, do Rainbow Cast, que mostra-se um verdadeiro deleite musical. O convidado, Bob Dylan, não chega a tempo, então Seegers segue com um músico de blues (Big Bill Morganfield) alcoolizado. Quando o protagonista aparece, atrasado, para o programa, os músicos improvisam tão naturalmente um blues como se já se conhecessem, o que nos faz (ao menos, me senti assim) querer assistir a tal programa. Veja-se que os pontos altos do filme são, justamente, os duetos que Bob Dylan estabelece para fazer fluir música, e não, necessariamente, cenas que lhe destaquem de forma exclusiva.
Sem investir em inovações de linguagem e seguindo a cartilha da temática, Mangold vai construir um filme bem feitinho e que sabe valorizar a música sem que ela ofusque os personagens, de modo superior a outros mais recentes que lhe precederam (lembro, novamente, a contragosto, do pavoroso Bohemian Rhapsody), mas que tende ao esquecimento com o decorrer do tempo – a falta de pretensão lhe favorece e desfavorece, concomitantemente.