Oeste Outra Vez | 2024

Oeste Outra Vez | 2024
Crítica originalmente escrita na cobertura da 28ª Mostra de Tiradentes para o Cinema com Crítica

O oeste brasileiro, representado pelo sertão de Goiás em Oeste outra Vez, é tipicamente um lugar de calor intenso, referenciado pelo céu alaranjado, pelas vibrações de miragem, pela aparência desértica, que tornam a transpiração humana aparente. Trata-se de um espaço de paisagens exuberantes, onde a vegetação rasteira é coberta de restos de lixo, sacos plásticos e garrafas de cachaça. O novo longa de Érico Rassi apresenta os elementos singulares do cinema de faroeste, mas o instinto de violência, aqui, é dissociado de qualquer aparência de virilidade ou força masculina: os cowboys e pistoleiros são homens amargurados, de físico frágil, que disputam entre si em razão da inaptidão em lidar com os próprios sentimentos ao serem abandonados por suas companheiras.

Nos últimos anos, é perceptível que há uma tendência de apropriação e renovação do western, realizado sob a perspectiva daqueles que, tradicionalmente, são desprovidos de representatividade adequada no gênero. Jane Campion o faz magistralmente em Ataque dos Cães, Kelly Reichardt em First Cow, Martin Scorsese em Assassino da Lua das Flores. A diversidade de olhares não só desconstrói e subverte violências e estereótipos, reproduzidos pela história do cinema gênero afora, mas também viabiliza reparações históricas e faz nascer novas narrativas. O abrasileiramento proposto por Érico Rassi vai, de forma semelhante, trabalhar com a transfiguração do ponto de vista tradicional, contudo, para refletir as figuras masculinas de um modo observacional e bastante psicológico, deixando que elas mesmas, pelo patético de suas ações (ou a falta delas) revelem, inconscientes de si, suas amarguras e melancolias.

É ainda mais interessante que tal concepção de masculinidade frágil parta de um diretor homem. Trabalhando sob uma linha tênue entre o risível e a humanização, o diretor encontra um ponto de equilíbrio impondo um respeito sensível por seus personagens. Oeste outra Vez carrega uma tristeza cômica, capaz de fazer rir sobre a dificuldade de se expressar daqueles homens, ao mesmo tempo que nos compadecemos de suas condições. Esse compadecimento, entretanto, jamais os coloca em posição de vítimas, e a genialidade de Rassi é se ajustar de forma certeira por entre tais caminhos que seriam tão facilmente ultrapassados. 

Totó (Ângelo Antonio) é um dono de bar inconformado com o fim de seu relacionamento. Quando sua ex-companheira passa a se relacionar com Durval (Babu Santana), parece impossível que ambos coexistam. A introdução primorosa da obra coloca Totó emboscando o veículo de Durval, e um embate físico entre eles começa. Com a câmera posicionada dentro de um dos automóveis, vislumbramos a única mulher presente no filme, o motivo da disputa. De costas para a briga, sua fisionomia é cansada, e sem lançar o olhar à risível tentativa de chamar sua atenção, ela sai do carro, e se afasta no horizonte da estrada de terra. Totó, então, decide contratar um capanga aposentado (Rodger Rogério) para dar cabo de seu inimigo.

Em que pese a ausência imagética de mulheres, elas são onipresentes na medida em que constituem a justificativa daqueles homens para digladiarem-se e afogarem suas frustrações. Não há, para além do ato introdutório, uma única mulher, mas são constantemente mencionadas e lembradas antes de um (ou muitos) copo de cachaça. Se o alcoolismo impera, se a casa está suja e a louça por lavar, se mal se alimentam, se querem assassinar uns aos outros, é porque não conseguem lidar com suas solidões, mas a culpa é atribuída à falta feminina. Homens broncos, adultos, quase monossilábicos, extravasam na violência e no auto abandono suas próprias fragilidades sentimentais. Buscam, em suas esposas, namoradas e companheiras, a figura materna que visa garantir o cuidado que perderam.

Rassi trabalha com dois elementos importantes na construção da inabilidade emocional dos homens de seu filme: a cachaça e o silêncio constrangedor. Os diálogos são acompanhados, geralmente, de um “sei bem como é que é”, cuja resposta é quase sempre um “não é fácil não”. A prosa dificilmente evolui e é seguida do esvaziamento de uma nova garrafa. Mesmo quando essas figuras estão próximas, um abismo parece existir entre elas, um distanciamento que é mantido em prol da defesa daquilo que a masculinidade representa. 

Talvez o exemplo mais significativo esteja no relacionamento entre os matadores Antonio (Daniel Porpino) e Domingos (Adanilo). Quando o personagem de Porpino tem dificuldades para dormir, seu companheiro de ofício se propõe a conversar. Cada qual em sua cama, ocupando os cantos da tela de modo a realçar a lacuna entre eles, muito embora sempre juntos, são incapazes de dialogar. O diretor evidencia o isolamento dos homens de seu filme afastando a câmera dos ambientes para mostrá-los em sua solitude, interior e exterior. É ironicamente triste, ainda, quando o movimento é realizado para mostrar, dessa vez, Totó em seu bar, apoiado no balcão, para revelar duas portas ao seu lado, com os dizeres “ele” e “ela”.

O personagem de Rodger Rogério, impecável em sua caracterização, acrescenta novas camadas a esse estudo de masculinidades. O pistoleiro idoso, que leva nas costas uma marca de gado, sofre por perceber a diminuição de suas capacidades em razão do avanço da idade e das consequências do descuido de uma vida. Ele mostra seu bíceps sem vigor para Totó, recorda quando era chamado para sempre realizar o trabalho mais pesado nas fazendas que trabalhou, sente saudades de seu passado, do respeito que tinha perante seus companheiros. Quando ele erra o alvo, sua frustração é perceptível pelo semblante cada vez mais cansado que o ator entrega, e ainda, por sua insistência em atirar a esmo, como que em treinamento. Diferentemente dos demais homens, ele não sofre por um amor abandonado, pois jamais relacionou-se com mulher alguma.

A busca cíclica pela violência de homens uns contra os outros soa como uma necessidade de autoafirmação de masculinidades ameaçadas. Para eles, o amor (ou o que eles chamam de amor) e a morte são indissociáveis. Enquanto sentimentos continuam sendo internalizados, o ciclo de matança não tem fim, e via de consequência, a amargura e a frustração também não. Resta, nessa constante, o bar, a cachaça e as canções bregas de amor sofrido de Nelson Ned, elementos que, unidos, são trégua e parecem permitir a proximidade, ainda que momentânea, desses seres estudados em Oeste Outra Vez.  

Nota:

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