Cartografia das Ondas | 2025

Crítica originalmente escrita na cobertura da 28ª Mostra de Tiradentes para o Cinema com Crítica
Conquistas e direitos sociais não são imutáveis. O tempo, o lugar e a estratégia política vão ditar as regras do momento, e a luta torna-se um ciclo, muitas vezes, exaustivo. No ocidente, ondas feministas vieram, mulheres foram atiradas e retiradas do mercado de trabalho para o retorno ao lar e cuidado dos filhos, até que a gradativa aquisição de algumas garantias se torne menos passível de bruscas mudanças. Ainda assim, mulheres estão muito longe de desvincular-se da constante batalha por si mesmas. Há muito a ser conquistado, e ainda que alcancemos, um dia, uma igualdade de gênero satisfatória, existe um ponto cuja complexidade sempre será sempre uma questão a ser infinitamente discutida: a maternidade.
Paternidade e trabalho são atividades paralelas que jamais serão tão enigmáticas quanto maternar e trabalhar. Em que pese o progresso, o julgamento social pesa fortemente sobre a maternidade. A mulher grávida ou mãe de uma criança pequena se torna coletiva, há um desejo e uma permissão social opinativa que visa estabelecer o que ela deve ou não fazer. Na docuficção Cartografia das Ondas, a diretora Heloisa Machado provoca, em camadas de metalinguagem, uma reflexão sobre si mesma, sua decisão de ser mãe e as consequências de sua escolha na vida pessoal e em seu ofício como cineasta e atriz.
A metalinguística proposta se divide em tramas que vão se inserindo umas nas outras, a iniciar por seu fragmento documental, onde a diretora, usando de uma narração em off poética, retrata sua relação com o teatro e o cinema, o primeiro como desejo, o segundo como opção mais viável de trabalho, e que vai caminhar até o nascimento e crescimento de sua filha. Na segunda camada, conhecemos Gledson, um grande amigo da cineasta que do sonho de ser ator, se tornou servidor público, e volta a se envolver com arte ao começar a escrever um livro sobre uma prostituta chamada Teresa. A amiga vai instigá-lo a realizarem um filme sobre o livro. Paralelamente, em um de seus fragmentos ficcionais, assistimos a reprodução da história/filme de Teresa, que vai mudando de rumo conforme Heloisa e Gledson vão escrevendo seu roteiro. E por fim, acompanhamos também a gravação do que seria o filme de Gledson, que soava, até certo momento, como documental.
Paralelamente, portanto, há dois filmes dentro do filme de Heloisa, cada um deles influenciando no destino do outro. O que mais sofre mudanças é o filme da personagem ficcional Teresa, o filme idealizado pela cineasta e seu amigo e que não acontece sozinho, mas vai ser realizado, ainda que caoticamente, em Cartografia das Ondas. De prostituta a ser decapitada, Teresa, grávida de um marinheiro que lhe encheu de promessas e a abandonou, se torna suicida e vai parar numa ilha onde todas as prostitutas vão após a morte, e cuja história vai sendo narrada pela voz calma de Antonio Pitanga. Na ilha, Machado tem espaço para refletir liberdade feminina, sororidade e também seus próprios dilemas. Vai abordar, ainda, a ideia de maternidade coletiva e rivalidade irracional entre mulheres que sofreram a perda de seus filhos.
A inventividade e a poesia de Cartografia das Ondas findam por ser prejudicados pela quantidade de informações e mudanças que são vão se acumulando. O documentário se mescla com a ficção, e a ficção vai sendo influenciada pela realidade (ou aquilo que presumimos que seja). Há momentos em que é tudo tão complexo e o vai-e-vem é tão confuso que acompanhar algum sentido se torna um verdadeiro desafio. Há outros em que o filme acalma, e é possível saborear sua doçura. É lindíssima, por exemplo, a sequência de imagens que a diretora compõe de sua filha, Liz, enquanto cantarola para ela uma música de ninar sobre um baobá. Há muito a ser dito e tudo é bastante pessoal, o que torna difícil a tarefa de cortar as rebarbas ou de encontrar alguns limites.
Liz, quando em tela, não só rouba a cena como é quem vai ressaltar, com seus próprios dizeres, o enigma que é manter o equilíbrio entre a maternidade e o trabalho, entre dar conta de tudo sem perder-se, sem que se deixe de ser mulher: “Todo mundo vai fazer filme e as crianças ficam em casa sem comer porque não podem mexer no fogão”, a pequena conta para a câmera de sua mãe, sem saber, com toda sua inocência, a provocação que instiga na mente materna. Heloisa Machado reflete, ao fim, que percebeu que precisava voltar a realizar cinema quando abordada por outra mãe que afirmava que os filhos eram a única alegria de sua vida. Não para a diretora. Não o deveria ser para mulher alguma. É possível ser mãe, amar seus filhos, amar tantas outras coisas simultaneamente e guardar amor próprio. Cartografia das Ondas, apesar de seus excessos, é um filme bonito, feito por uma mulher que também é mãe – pequenas grandes vitórias que precisam ser celebradas.