Kickflip | 2025

Crítica originalmente escrita na cobertura da 28ª Mostra de Tiradentes para o Cinema com Crítica
Em tempos de trivialidade de celulares e suas câmeras, de programas de edição na palma da mão, da possibilidade de circulação de imagens em movimento de forma imediata na internet, do sucesso das redes sociais exclusivas ao vídeo, filmes como Kickflip, dirigido por Luca Filippin, nos fazem questionar: quais os limites do fazer cinema? O que pode ser considerado cinema nos dias de hoje? Podemos chamar de cinema os vídeos que gravamos em nossos celulares, se editados e unidos em certa coerência?
Chama a atenção que a 28º Mostra de Cinema de Tiradentes tenha dado espaço para dois filmes cujo fundamento é, primordialmente, a gravação por meio de celulares e seu aspecto doméstico. Um deles é Um Minuto é Uma Eternidade para Quem Está Sofrendo, de Wesley Pereira de Castro e Fábio Rogério. O outro é justamente Kickflip. Enquanto o primeiro é um retrato íntimo e esmerado de seu realizador, o segundo soa como um compilado de traquinagens juvenis que não encontram e não transmitem qualquer lógica narrativa ou sensorial. Classificada como docuficção, reproduz os vídeos que o diretor e seus amigos gravaram para a internet, se alternando entre tentativas de andar de skate e realizar a manobra que dá nome à obra, e uma sorte de bobagens divertidas e nojentas como uma competição chubby bunny que faz engolir a maior quantidade de marshmallows possível.
Quando foi apresentar seu filme em Tiradentes, Filippin o apresentou de forma sucinta: “Kickflip é uma manobra de skate”. O filme usa boa parte de sua duração para reproduzir as tentativas de realização da referenciada manobra em estacionamentos de prédios, lojas de departamentos, shoppings centers e construções. Alterna, sem muita costura ou cuidado, a prática do esporte com o material feito para as redes sociais. Comer no McDonalds, assistir a um vídeo no YouTube, gravar falsas declarações depressivas no banheiro, chubby bunny, filmar a si mesmo manuseando uma espada em meio a passarelas de travessia de pedestres, são apenas alguns dos passatempos registrados. Se a kickflip como manobra é uma tentativa para eles, Kickflip como cinema também o é.
Dado que, laconicamente, o cinema experimental é aquele em que a linguagem cinematográfica é explorada e circunda caminhos que vão além dos puramente narrativos, Kickflip, que até poderia ser considerado um filme experimental, não consegue se encaixar. O diretor testa as possibilidades das ferramentas de sua câmera no sentido mais despretensioso possível. Não se percebe, aqui, um propósito desafiador. Tampouco se extrai, das imagens criadas, uma intenção de provocar sensações. Se há, no cinema, o objetivo de se fazer arte, não o identificamos. Talvez um acaso com vislumbre de arte cujos realizadores ainda precisam, e muito, amadurecer.
Kickflip não se leva, nem um pouco, à sério, e essa quiçá seja sua maior qualidade. Os jovens ali retratados parecem muito conscientes de suas próprias galhofas, zombam de si mesmos e findam por refletir, sem muita profundidade, a natureza das redes sociais e da geração que não conhece uma realidade sem elas. Há um pretenso influencer que eles assistem, outro adolescente, que diz fumar e tomar café o dia todo, ao mesmo tempo em que não recomenda que seus seguidores o façam, ao que eles concluem não estar, de fato, influenciando ninguém, vez que ele deixou a mensagem de toxicidade de suas atitudes. Esse mesmo influenciador recomenda “se você quer gravar vídeos, não faça nada forçado, seja você mesmo”, enquanto vemos o próprio diretor fugindo dessa naturalidade.
Na medida em que o filme decorre, parece ir adquirindo uma certa lucidez sobre a possibilidade de ser lido como cinema. O diretor constroi closes mais expressivos, faz uso de zooms até interessantes, porém, esses lapsos de autopercepção são fagulhas e retoma-se o experimento adolescente, que beira, em sua finalização, a irresponsabilidade, especialmente quando trata de saúde mental, tema que parece recorrente nos vídeos dos jovens, mas que cai na inconsequência ao insistir nos gracejos em todos os momentos.
Kickflip é uma coleção de vídeos do TikTok que decidiu ser cinema. É uma brincadeira adolescente que parece ter dado certo, já que foi exibido nas telonas de um festival. Se fazer cinema é ter uma câmera na mão e uma ideia na cabeça, o segundo elemento essencial à arte ficou faltando. Não que falte criatividade ao diretor, pelo contrário. Contudo, há de ainda existir a exigência de um mínimo de metodologia e autoconsciência no fazer cinematográfico.