Onda Nova | 1983

Onda Nova | 1983

Sexo, futebol e feminismo

Houve um tempo em que filmes brasileiros ocupavam 30% das salas de cinema no país, fato difícil de se acreditar, visto que, ainda hoje, a disparidade entre as produções nacionais e as do eixo estadunidense e europeu são enormes. Toda a comoção gerada por Ainda Estou Aqui parece ter feito ressurgir esse debate, até mesmo inspirando atitudes governamentais, como restauração e disponibilização de acervos e leis de incentivo ao audiovisual. Antes deste sucesso, foi na década de 70 que o Brasil viveu seu ápice na indústria cinematográfica, quando a pornochanchada levava milhões de pessoas à frente das telonas. Onda Nova, de José Antonio Garcia e Ícaro Martins, traz as características do gênero tipicamente brasileiro, mas o subverte e o ressignifica com um olhar feminista e politizado, e que, por isso foi, censurado pela ditadura militar em 1983, reestreando nos cinemas em 2025.

O humor, inspirado nas comédias italianas, e as cenas de erotismo, geralmente partindo de temas como adultério e virgindade, eram elementos constituintes da pornochanchada, instigando pessoas que passavam por um processo de liberação sexual a se desinibirem. Longe de ser um evento aleatório, este movimento cinematográfico tinha por objetivo atender a demanda de diversão masculina, exibindo corpos de mulheres nuas em cenas de sexo, e entreter o povo enquanto de outro lado aconteciam as atrocidades da ditadura.  

Vários artistas viram nesse cenário a possibilidade de produzirem seus filmes com facilidade e com um ótimo retorno financeiro. O que, por um lado, incentivava a cultura do pão e circo do autoritarismo, por outro, era a lacuna que viam para questionar o sistema dentro dele mesmo. Assim o fez Carlos Reichenbach em A Ilha dos Prazeres Proibidos, em 1979, bem como fizeram José Antonio Garcia e Ícaro Martins com Onda Nova. Este, já no declínio da pornochanchada, não teve a mesma “sorte” daquele, e o seu vanguardismo não foi aceito pelo governo, relegando a obra ao limbo por décadas.

Martins, em entrevista concedida ao Coletivo Crítico, afirma que, mesmo depois de tanto tempo, seu filme continua atual, pois vivemos um momento parecido com aquela época. Se lá a sexualidade se tornava mais livre após anos de repressão, hoje, superando o moralismo e o conservadorismo imposto pelo bolsonarismo, o erotismo se torna novamente uma arma. Agora, mais de 40 anos depois, a obra se reforça como afronta às convenções da hipocrisia e reafirma a liberdade da arte.

Afastando-se do sexismo e do caráter comercial do subgênero popular dos anos 70, em Onda Nova cada linha é uma irônica provocação. Acompanhamos o cotidiano das jovens mulheres de um time de futebol feminino, o Gayvotas F.C., desde os treinamentos e jogos, até os dilemas de seus relacionamentos. Ritinha (Carla Camurati) e Lili (Cristina Mutarelli) são as personagens principais. A primeira se descola da vida abastada de sua classe social para viver um namoro aberto e fervoroso, além de praticar o esporte e se divertir com as amigas; a segunda não tem seu gosto pelas chuteiras aceito pela família que alega “falta de feminilidade” na garota. Algumas subtramas são inseridas na narrativa que, ainda, trazem ao debate a homossexualidade feminina e masculina, o aborto e o suicídio.

Os diretores dão ênfase à jovialidade da trupe. O desejo à flor da pele é a impulsividade que leva todas à diversão livre, contornando, inclusive, suas dores, como se fosse um ato inevitável dentro daquele coletivo de mulheres. Isso fica evidente quando uma moça que estava na arquibancada procura o time para fazer parte, tendo aquela liberdade como seu estímulo para também se ver como uma mulher livre.  

As cores adornam a vivacidade de tal juventude oitentista, um destaque à parte da restauração em 4k que chega aos cinemas neste ano. Em alguns momentos Onda Nova pode lembrar a rebeldia dos filmes de John Waters, em outros usa do surrealismo de Luis Buñuel para ganhar contornos absurdistas, mas há sempre a originalidade brasileira, a malícia da pornochanchada e o humor que rende momentos icônicos, como a participação de Casagrande, então jogador do Corinthians, ou a de Caetano Veloso interpretando a si mesmo como um fervoroso amante no banco de trás de um fusca durante uma corrida de táxi.

Mesmo que escrito e dirigido por dois homens, o filme é rico em detalhes que reforçam sua bandeira feminista. O figurino, a trilha sonora e a diversidade na representação das mulheres são méritos reunidos por Garcia e Martins. Os homens ficam em segundo plano, o que acaba levando Onda Nova a um desfecho controverso, quando centraliza o ápice dramático na ação masculina. Porém, a tragédia final pode ser o sinal de que a masculinidade ainda é perigosa e não alcança a liberdade que a feminilidade tem.

Esperar que Onda Nova chegue ao sucesso que um dia foi a pornochanchada no Brasil, ou que alcançou Ainda Estou Aqui é utopia, mas o evento de seu relançamento no contexto em que vivemos, é uma deliciosa afronta ao moralismo obscuro e hipócrita que amarra a sociedade e o torna especial.

Nota:

Author

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *