Filmes Vistos no 75º Festival de Berlim: Comentários

Breves comentários dos filmes vistos na Berlinale 2025 (por ordem de preferência)

Dreams (Sex Love)
Dir: Dag Johan Haugerud
País: Noruega
Nota: 5
Há algo sobre a adolescência que, no decorrer de nossas vidas, passamos a banalizar, talvez, como forma de autoproteção. A intensidade e a ebulição causadas pelas emoções exacerbadas, a entrega que faz misturar as sensações do corpo às dores e pulsações da alma, vão perdendo-se gradativamente ao ponto da indiferença da vida adulta, para encontrar, em nossos corpos idosos, um anseio pela experiência desse mesmo latejo, e, via de consequência, um desejo por aquilo que não foi vivido. Esse complexo cruzamento geracional, a adolescência que se encontra com a vida adulta e a terceira idade, se dará, nas mãos de Dag Johan Haugerud em Dreams (Sex Love), através da transmissão desse vigor entre três mulheres, filha, mãe e avó, da mais jovem para a mais experiente, num fio proporcionado pela escrita sobre as fantasias, aflições e maravilhas de se apaixonar pela primeira vez.
Johanne (Ella Øverbye), é a protagonista-narradora, a adolescente que sente seu corpo mudar e arder desde que vê sua nova professora pela primeira vez. A potência elevada daquilo que sente logo se torna uma fantasia, tão doce quanto sexual, uma obsessão saudável e inevitável da jovem que idealiza e deseja essa mulher mais velha, que modula cada ato de sua rotina para encontrá-la, que interpreta cada fala e cada olhar com um sentido que, provavelmente, só existe em sua imaginação. A urgência de não deixar morrer algo tão pessoal a faz escrever sobre sua história – ou, ao menos, o seu ponto de vista. Diretamente referenciado em Little Women, o diretor transforma a adolescente em escritora de uma espécie de obra prima romântica e erótica, um relato voraz cuja ideia de publicação em livro vai partir não dela, mas de suas matriarcas. (…)

O Último Azul
Dir. Gabriel Mascaro
País: Brasil
Nota: 4,5
O cinema brasileiro que experimentamos hoje vive o fenômeno curioso da obsessão popular, em razão do fenômeno da enorme repercussão e indicações ao Oscar de Ainda Estou Aqui. Ganhando o mundo e se fazendo presente nas premiações desde o Festival de Veneza do ano passado, o filme colocou a produção cinematográfica e os festivais em um radar que ultrapassa a bolha da cinefilia, estimulando torcidas e rivalidades tal como o futebol. Nos últimos anos, nossos filmes estiveram presentes em todos os principais festivais internacionais, ocupando lugares de destaque nas competições principais. O Último Azul, do diretor pernambucano Gabriel Mascaro, segue essa tendência na 75ª Berlinale, não só integrando a mostra competitiva, como também um dos que melhor foi recebido pela crítica. Uma obra enigmática, tão doce quanto angustiante, tão humana quanto mística, que aborda um Brasil que não queremos através do realismo mágico, mas que é tão palpável e tão particularmente brasileiro que não soa distante – e isso é aterrorizante.
Esse Brasil, amargo e distópico, ganha otimismo e rejuvenesce com Tereza (Denise Weinberg), uma mulher de 75 anos que é compelida a aderir a um programa governamental de aposentadoria compulsória de pessoas idosas, que os isola em uma colônia onde passam o restante de suas vidas, possibilitando, assim, que seus filhos possam utilizar o tempo que demandariam cuidando dos pais, para continuar produzindo em prol do desenvolvimento do país. Nesse contexto, com a vinda da idade, os filhos automaticamente recebem a guarda de seus pais. A polícia cidadã exerce o controle do programa, fazendo uso do veículo “cata-velho” para devolver os idosos fugitivos aos seus guardiões. Vivendo numa cidade ribeirinha amazônica, Tereza recusa submeter-se e inicia uma jornada em busca de viver o que ainda não viveu e realizar seus sonhos. (…)

Blue Moon
Dir. Richard Linklater
País: Irlanda, Estados Unidos
Nota: 4,5
Richard Linklater talvez compreenda o amor e suas mais diversas formas como poucos. É um romântico que não se deixa idealizar, e parece se expandir em cada obra, ainda que aborde a mesma temática. Afinal, o amor que nasce de um encontro repentino num trem e amadurece em uma única noite não é o mesmo amor que nasce da atração sexual do fetiche entre um investigador disfarçado de assassino de aluguel e a mulher que o quer contratar. Não é o mesmo, ainda, nutrido por uma mãe e seus filhos, ou por um garoto que admira o espaço. O diretor possui habilidade ímpar de expressar tais amores com sensibilidade, realismo, bom-humor, inteligência e pequenas doses de melancolia. O que é o amor se não for, em algum nível, melancólico? Inevitavelmente, ele acompanhará o sofrimento, principalmente, quando não correspondido. A 75ª Berlinale deu seu Urso de Ouro para Dreams (Sex Love), cuja abordagem vai encontrar suas semelhanças em Blue Moon, novo presente de Linklater ao mundo do cinema: as dores do sentimento que não se concretiza como possibilidade de expressão artística.
Blue Moon, vencedor do Urso de Prata de melhor atuação coadjuvante para Andrew Scott, conta a história do compositor Lorenz Hart, vivido por um apaixonado Ethan Hawke, outro que parece se renovar a cada papel. No auge do sucesso do show Oklahoma!, realizado em coautoria com Richard Rodgers (Scott), o artista manifesta um amor profundo e muito poético pela jovem de 20 anos, Elizabeth (Margaret Qualley). Filmado inteiramente em internas de um Sardi’s Bar (estabelecimento centenário localizado na Broadway) vazio, especificamente na noite de estreia de 31 de março de 1943, trazendo Bobby Cannavale como bartender, um Hart alcoolizado proclama, emocionado, monólogos sobre sua musa inspiradora, até que ela adentre o salão não só para comprovar seu status, mas também para acarretar decepção e tristeza pelo que vamos compreendendo se tratar a relação por eles mantida. (…)

Living the Land
Dir. Huo Meng
País: China
Nota: 4
Living the Land, de Huo Meng, que recebeu o Urso de Prata de Melhor Direção no 75º Festival de Berlim, não poderia carregar melhor título. A relação do ser humano com a terra e o modo como ela se transforma com o tempo e acompanha as mudanças sociais são sintetizadas pelo diretor pelo recorte de um período específico da vida na China, o início da década de 1990, quando o avanço tecnológico remodela radicalmente o estilo de sobrevivência das comunidades rurais, e um êxodo se inicia rumo às cidades. Gerações familiares se encontram naquele vilarejo interiorano retratado pelo filme, que vive da terra e que possui plena consciência do retorno à essa mesma terra com a morte.
Nascimento, vida e morte. Casamentos, lavores e funerais. Os ciclos naturais e mandatórios que resumem o que é viver em sociedade vão acontecendo e se somando na comunidade, que reúne bebês, crianças, adultos e idosos cuja idade sequer é conhecida. Dentre as tantas fases retratadas, Huo Meng vai dedicar longo tempo de tela a um funeral, quiçá aquele que mais simbolicamente vai dar significado ao vínculo terrestre que o Living the Land quer realçar. O ritual congrega todas as gerações que coexistem naquele local, e os papeis desempenhados por cada um, conforme o gênero e o tempo de vida, são claramente demonstrados. As mulheres adultas, as que numa família seriam intituladas de mães e tias, são as que performam o sofrimento e a dor pela morte ali homenageada. Há um exagero escandaloso, uma necessidade de externar, através de gritos e lamentos audíveis e visíveis, sentimentos quase que obrigatórios e demonstrados de forma muito teatral – uma das personagens lamúria (sem lágrimas) em cima do caixão, clamando, aos berros, ao morto: “Por favor, levante!”. É trágico, é cômico, mas representativo de um povo. Nota-se que esse próprio calvário faz parte de um costume, uma tradição. Aos homens, ali, compete carregar a esquife. Cabe aos mais novos aprender com os mais experientes. (…)

A Natureza das Coisas Invisíveis
Dir. Rafaela Camelo
País: Brasil
Nota: 4
“Não há nada que façamos no hospital que você não possa fazer em casa”. Quando o corpo vai perdendo a vida e a medicina não mais é suficiente, há curas que só são encontradas nos lares – o lar como espaço físico, o lar como o alento de pessoas queridas, o lar como a alma que precisa aceitar o fim. A Natureza das Coisas Invisíveis, de Rafaela Camelo, exibido na 75ª Berlinale na Mostra Generation Kplus, vai conectar uma geração de mulheres de famílias diferentes através da morte, do modo como a percebemos, e da possibilidade de suas muitas formas em nossas jornadas. Há mortes que se fazem necessárias para que novas vidas possam nascer.
Antonia (Larissa Mauro) é enfermeira e trabalha num hospital, e Glória (Laura Brandão), sua filha, precisa acompanhá-la durante as férias escolares. A menina conhece os pacientes sob os cuidados de sua mãe e é tratada por todos carinhosamente, e lida diretamente com situações de doença e morte. Quando a paciente Francisca (Aline Marta Maia) chega ao hospital, mãe e filha conhecem Simone (Camila Márdila) e Sofia (Serena), respectivamente, neta e bisneta da adoecida, Rapidamente, Serena e Glória se tornam amigas, descobrindo juntas os cantos do hospital enquanto a internação da bisavó persiste. (…)

If I Had Legs I’d Kick You
Dir. Mary Bronstein
País: Estados Unidos
Nota: 4
A dualidade de sentimentos e sensações acarretados pela maternidade já foi tratada pelo cinema à exaustão. Direta ou indiretamente, filmes podem tanto incentivar o desejo de maternar quanto afastá-lo, a depender do quanto penderá para as extremidades da abordagem – se idealizada ou monstrificada. Não há moralismos ou julgamentos, e nem há (ainda bem) certo e errado em fazer cinema. Fato é que alguns filmes vão se tornar desserviço ou podem, até, trazer pontos de vistas criminosos sobre determinados objetos. Mas isso não faz parte do fazer cinema, o modo, o como fazer, é plenamente livre. If I Had Legs I’d Kick You, novo filme de Mary Bronstein que integrou a mostra competitiva da 75ª Berlinale, vai pender ao extremo mais assustador da maternidade. Não vai tornar a mãe uma vilã, mas vai humanizá-la aflorando e exacerbando suas percepções e aguçando seus sentidos como mãe, como mulher, como mulher que trabalha e que não consegue encontrar um minuto sequer de paz.
If I Had Legs I’d Kick You não é o único filme a abordar a maternidade na competitiva da 75ª Berlinale. A produção da A24 caminha ao lado de Mother´s Baby, ambos dirigidos por mulheres, para trazer às telas os encargos de ser mãe e o turbilhão de responsabilidades e sentimentos que acompanham a função, que é muito maior do que a determinada pela biologia. Dentre as tantas possibilidades de tratamento da temática, o longa de Bronstein alcança um status claustrofóbico muito específico, graças ao trabalho de atuação de Rose Byrne, premiada como melhor atriz na edição deste ano do festival, como pelo trabalho de direção que vai fechar nosso campo de visão quase que integralmente na expressão e nas ações da personagem.

Ato Noturno
Dir. Marcio Reolon e Filipe Matzembacher
País: Brasil
Nota: 4
Das inúmeras possibilidades de cinema que temos, é cediço que algumas linguagens e narrativas necessitam trilhar caminhos subversivos para representarem, apropriadamente, a si mesmas. Assim é, por exemplo, com o cinema africano, que precisou apropriar-se do europeu (feito, diga-se, também à sua exploração) para criar o seu próprio. Assim o é com o cinema queer, que apesar de rotulado, se recusa a limitar-se ao cerco que eventualmente tenta lhe ditar regras de como deve ser realizado. Ato Noturno, dirigido pela dupla Marcio Reolon e Filipe Matzembacher, rejeita as expectativas que ele mesmo cria sobre o comportamento de seus personagens, desafiando o espectador a refletir sobre a forma como enxerga e o que espera de pessoas LGBTQIA +.
Um ator e um político. Matias (Gabriel Faryas) e Rafael (Cirilo Luna) são duas figuras públicas em ascensão que vão se encontrar através de um aplicativo de relacionamentos, com o propósito de manterem-se ocultos em suas preferências sexuais e fetiches. A intensidade da atração e da dinâmica sexual é uma crescente, e o desejo de permanecer às escondidas vai cedendo ao risco de sentir e mostrar prazer em público. Não só a prática de cruising (busca por parceiros anônimos para a pegação ou sexo praticado em espaços públicos) vai se tornar hábito na rotina de ambos, como, diga-se, a ousadia do sexo feito (e bem feito) nas fuças da família tradicional brasileira mostra-se uma necessidade de imposição existencial. (…)

Reflection in a Dead Diamond
Dir: Bruno Forzani e Hèlène Cattet
País: Bélgica, França, Itália, Luxemburgo
Nota: 4
É um tanto satisfatório quando festivais tradicionais como a Berlinale abram seus espaços para que obras menos convencionais integrem mostras de maior destaque, que possam ser consideradas em equivalência às narrativas mais clássicas. A presença de Reflection in a Dead Diamond, dirigido pela dupla Hélène Cattet e Bruno Forzani, na mostra competitiva do Festival de Berlim 2025, vem reforçar a necessidade de valorização de todos tipo de cinema, em pluralidade de linguagens, em diversidade de narrativas e modos de se trabalhar a imagem.
Reflection in a Dead Diamond é uma obra experimental que fez muitas pessoas, em sessões exclusivas de imprensa, deixarem as salas de cinema. O incômodo consiste justamente no motivo para que outras como ela marquem presença em grandes festivais: o filme é majoritariamente sensorial e carregado de estímulos – sons exacerbados, cores, luzes, agilidade de cortes e, principalmente, fazendo jus ao seu título, a presença de elementos de reflexos que vão brilhar na tela. Diamantes, espelhos, água e vidros vão ser reproduzidos tanto em imagem como em som, sendo possível a oitiva do tintilar do diamante refletido de forma quase que constante. (…)

Kontinental ‘25
Dir. Radu Jude
País: Romênia, Brasil, Suíça, Reino Unido, Luxemburgo
Nota: 3,5
Conhecedores dos filmes de Radu Jude já esperam dele um cinema anticapitalista. A ortodoxa Romênia, sua terra de origem, é palco para extensos debates fílmicos a respeito das relações de trabalho, de poder, de propaganda, consumo e classe social, expondo, com uma ironia e humor que lhe são muito característicos, e personagens que lidam com situações das mais inusitadas, as hipocrisias de seu país, extensíveis ao mundo. Em Não Espere Muito do Fim do Mundo, através de uma personagem faz-tudo que labora mais de 12 horas por dia e precisa convencer vítimas de acidente de trabalho a filmarem propagandas de segurança no trabalho, traz o fim do mundo como a realidade do capital que consome e suga o trabalhador. No divertido Má Sorte no Sexo ou Pornô Acidental, uma professora de ensino infantil sofre as consequências do vazamento de um vídeo erótico íntimo na internet numa longa reunião de pais em período pandêmico, que vai questionar os limites da divisão do labor e da vida comum, se é que há.
No seu mais recente trabalho, Kontinental ‘25, que integrou a mostra Competitiva do 75º Festival de Berlim e recebeu o Urso de Prata de Melhor Roteiro, o diretor, que filma com Iphone 15, novamente vai nos dar uma protagonista feminina, Orsolya (Eszter Tompa), uma oficial de justiça que precisa despejar um homem de uma propriedade por ele ocupada ilegalmente. Com auxílio policial, buscando garantir que tudo seja feito conforme a cartilha e sem abusos, enquanto aguarda que o homem guarde seus pertences e saia do local, ao retornar, encontra-o morto – o homem comete suicídio fazendo uso dos fios de um aquecedor. Sentindo-se culpada, a personagem vai lidar com dilemas morais íntimos, bem como com as consequências da tragédia, que torna-se conhecida publicamente. (…)

Ancestral Visions of the Future
Dir. Lemohang Jeremiah Mosese
País: Lesoto, França, Alemanha, Catar, Arábia Saudita
Nota: 3,5
Fragmentos de uma história em forma de poesia. Poesia em forma de imagem. Lemohang Jeremiah Mosese, após o hiato de seis anos que sucedeu Isso Não é Um Enterro, é Uma Ressurreição, oferece a ode visual de Ancestral Visions of the Future, seu novo filme que integrou a Berlinale Special, como uma homenagem à sua mãe e uma ode ao cinema. O diretor vai transformar as lembranças de sua infância em uma representação imagética mística e meditativa, que vai se impor através de uma força natural que hipnotiza o espectador.
Tal como no longa anterior, o diretor vai trabalhar com a potência da composição dos planos, com um uso expressivo das cores, das performances frontais e dos movimentos corporais calculados, e da câmera lenta em prol da transmissão de um prazer visual profundo. Os retalhos se unem não para que forme-se uma narrativa linear, mas uma reflexão sobre ancestralidade, gerações, a terra e seu significado com origem e a necessidade de deixar tudo isso para trás, e a narração em off vai situar o que vemos no contexto pessoal de Mosese.
A mãe do cineasta é por ele representada com uma beleza vivaz, que afronta a câmera quase como se em autodefesa. A figura materna é uma mulher com presença de tela impressionante, que desafia, que parece disposta a lutar com unhas e dentes, que late (literalmente) em defesa dos seus e dela mesma. É uma loba, uma leoa, uma mulher insubmissa e calejada pelas dores da vida.
A construção poética de Ancestral Visions of the Future, para além dessa jornada de luta ancestral e contemplativa, parece encontrar um alento e uma finalidade no cinema e no próprio contato do diretor com a arte: ele nos apresenta a sétima arte como a respiração de Deus, como um lugar sonhado, com a voz de sua imaginação que é capaz de transportá-lo para outros lugares, inclusive, para aqueles que ele não mais retornará.

What Does That Nature Say to You
Dir. Hong Sang-soo
País: Coréia do Sul
Nota: 3,5
É curioso que a primeira palavra que me surja ao pensar no cinema de Hong Sang-soo seja, justamente, ousadia. Marcando presença, pelo segundo ano consecutivo, na mostra competitiva da 75ª Berlinale, o diretor, muito consciente de que seu status autoral consolidado o permite bater de frente com produções bem menos modestas que as suas, não teme ousar debochadamente ao trazer, uma vez mais, uma obra cuja qualidade imagética seria considerada amadora não fosse característica (e propositada) de muitos dos seus trabalhos. A baixa qualidade proporcionada pela câmera digital e o gradativo desfocamento de What Does That Nature Say To You vão bem representar a própria situação de Donghwa (Ha Seongguk), um jovem poeta que conduz sua namorada, Junhee (Kang Soyi) até a casa dos pais, sem imaginar que um simples convite para conhecer a casa, que o impressiona pelo tamanho, se tornaria o dia em que ele conheceria a família dela, e essa, as pretensões e a adequação dele como parceiro ideal da filha.
Hong Sang-soo é mestre do humor extraído das situações constrangedoras. O humor é tão sutil quanto seus filmes. Surgirá de conversas em planos longos que não se desenvolvem, de figuras que acenam com a cabeça e não sabem o que dizer um ao outro, de diálogos tímidos e silêncios desconfortáveis. Em What Does That Nature Say To You os personagens são menos inocentes do aparentam ser, e a comédia tomará rumos levemente amargos e dramáticos após um dia todo regado a álcool, comida e boas doses de makgeolli, um vinho de arroz típico da Coréia, que, tal como em A Traveler’s Needs (que integrou a competitiva da 74ª Berlinale), tomará a vez do soju como bebida responsável pelo relaxamento, e, via de consequência, colabora para que atinjam um conforto perigoso e passem a ser, em níveis gradativos, sinceras demais. (…)

Mickey 17
Dir. Bong Joon-Ho
País: Estados Unidos, Reino Unido
Nota: 3,5
Bong Joon-Ho abraça o Paul Verhoeven de Tropas Estelares, a Claire Denis de High Life, homenageia a si próprio e satiriza abertamente a banalização da vida que vem com a militarização da política, com a gana da colonização que nunca acaba, e com o capitalismo que caminha para encerrar nossa espécie. Mickey 17 é muita coisa, e o é de forma escrachada porque sim, ele pode, tem o investimento e o aval para isso, e credibilidade suficiente para tratar de toda essa temática repetitiva de um modo claro, objetivo, que possui o viés muito evidente de deboche – a diversão é consequência.
Robert Pattinson cai como uma luva na pele de Mickey (é incompreensível que ainda haja dúvidas sobre sua posição como um dos melhores atores contemporâneos), o homem que se torna experimentação científica, programada para se submeter aos mais diversos modos de morrer, a todo tipo de dor e sofrimento, porque em seguida, será “ressuscitado”. Bong não cria reflexões muito complexas, preferindo navegar nos estímulos e sensações possibilitados pela ficção científica para divertir (e se divertir) sem grandes esforços. A opção pelo gênero após Parasita e todo o peso que o filme traz consigo é um claro passo do diretor para desvincular-se de qualquer obrigação de repetir ou se assemelhar ao anterior, o que soa uma manobra acertada que o livra de estigmas e expectativas.

A Complete Unknown
Dir. James Mangold
País: Estados Unidos
Nota: 3,5
“Uma boa música só pode fazer o bem.” Esperançosas, as palavras ditas por Pete Seegers (Edward Norton) durante seu julgamento sob acusação de comunismo e antipatriotismo são seguidas de uma canção tocada em plena corte estadunidense, em tom comovente que tenta convencer que, ao seu modo, ele é tão patriota quanto aqueles que o acusam. Coroando sua aura de bom moço, encontraremos o músico folk cantando a um adoecido e hospitalizado Woody Guthrie (Scoot McNairy), músico-inspiração de Bob Dylan (Timothée Chalamet) e a quem ele procurará e que o conectará com Seegers, responsável por alavancar sua carreira. Um Completo Desconhecido, dirigido por James Mangold, que integrou a Special Gala da 75ª Berlinale e foi indicado a 8 estatuetas do Oscar 2025, atribui papéis bem delineados e típicos das autobiografias musicais: Seegers funcionará como uma espécie de guia paternal de Dylan, o músico desconhecido que ascenderá para tornar-se uma figura famosa e polêmica, cercado de mulheres que o desejam e sofrem por ele.
A trajetória de amadurecimento, queda e aprendizado do protagonista é redonda e definida. Um Completo Desconhecido vai seguir a trajetória de Bob Dylan a partir do anonimato, dando saltos inteligentes para fases específicas de sua carreira sem perder tempo em ater-se a detalhes da linha temporal, mas focando, principalmente, na insistência do músico em não ceder às tendências e transigir convenções musicais, e o filme utiliza-se das canções mais conhecidas para delimitar os acontecimentos, bem como no triângulo amoroso mantido por uma vida entre ele, Sylvie Russo (Elle Fanning) e Joan Baez (Monica Barbaro). (…)

Honey Bunch
Dir. Dusty Mancinelli e Madeleine Sims-Fewer
País: Canadá, Estados Unidos, Finlândia
Nota: 3,5
O cinema permite florear relacionamentos cujos modelos encontramos na vida real e abordá-los de infinitas formas e simbolismos. Não tem obrigação alguma de ser parâmetro educacional ou reflexivo, mas muitas vezes o é. Noutras, resume-se a uma boa história ser contada. Honey Bunch, suspense canadense dirigido por Madeleine Sims-Fewer e Dusty Mancinelli que fez parte da Berlinale Special da edição de 2025 do festival, vai traduzir, em seus protagonistas Diana (Grace Glowicki) e Homer (Ben Petrie) como um relacionamento tóxico pode se tornar, pelo olhar cinematográfico, fofo e adorável, sem que isso configure uma abordagem problemática.
Depois que Diana sofre um acidente, que lhe causou perda de memória e frequentes dores de cabeça, seu devotado marido Homer a interna numa clínica que oferece um tratamento experimental de recuperação total. A terapia unida à dedicação do esposo, que se interna junto com a recuperanda, são, segundo o proposto, a fórmula para a cura. Quanto mais o tratamento avança, porém, mais Diana se envolve em visões fantasmagóricas, saltos temporais e alucinações, que vão se misturando às suas memórias, gradativamente em retorno, e cada vez maior a estranheza que rodeia o lugar – e as pessoas que ali estão, a incluir, Homer. (…)

Yunan
Dir. Ameer Fakher Eldin
País: Canadá, França, Alemanha, Itália, Jordânia, Estado da Palestina, Catar
Nota: 3,5
Aqueles que já experimentaram, em algum nível, sintomas ansiosos ou depressivos, conhecem bem os sinais do corpo que se manifestam, de forma descontrolada, para enfrentar uma situação de perigo que materialmente inexiste. O corpo se defende daquilo que a mente produz como risco, que é imaterial, mas assombroso tal como uma ameaça física. Esse sistema instintivo e defensivo atua, na mesma medida, de forma protetiva e destrutiva. A destruição vem na forma de ciclo de ataques de pânico, aumento do ritmo cardíaco, da pressão arterial, sudorese e pensamentos de morte, que vão confundir-se a doenças físicas que jamais serão descobertas ou diagnosticadas quando não se procura o auxílio do profissional correto.
Yunan, coprodução da Alemanha, Canadá, Itália, Palestina, Catar, Jordânia e Arábia Saudita, dirigida pelo ucraniano de origem síria Ameer Fakher Eldin que integrou a mostra Competitiva da 75ª Berlinale, vai despejar o enorme fardo da depressão e o modo como ela se manifesta em seu protagonista Munir (Georges Khabbaz), um silencioso homem de meia idade, cujas poucas palavras não conseguem manifestar o que sente, fazendo com que o corpo fale por ele. Munir tem frequentes ataques de pânico refletidos pela respiração curta e ofegante que surge repentinamente e que o desespera, o fazendo buscar médicos que atribuem seus sintomas ao estresse. A câmera que passeia por sua mesa de trabalho vai dar, outrossim, os sinais que ele não diz: desorganização, sujeira, álcool e cigarros tomam conta do ambiente. Durante o sexo, ele não consegue gozar. Resolve, então, partir em viagem para uma ilha remota para isolar-se, lá encontrando, na hospedaria que ele não consegue vaga por ausência de reserva prévia (muito embora o local estivesse vazio), a figura enigmática de sua dona, Valeska (Hanna Schygulla). Entre eles, a relação que nasce do estranhamento e da agressividade mútua vai transformando-se numa amizade silenciosa que se manifesta gestualmente para, aos poucos, revigorar a força de Munir. (…)

Growing Down
Dir. Bálint Dániel Sós
País: Hungria
Nota: 3,5
Sándor (Szabolcs Hajdu) é a única testemunha de um grave acidente envolvendo duas crianças: seu filho e a filha de sua noiva. O húngaro Growing Down, segundo filme visto na 75ª Berlinale, mostrou-se um início de festival um tanto denso. O diretor Bálint Dániel Sós vai explorar, através do drama familiar e da investigação criminal, a ética a moral de adultos e crianças diante de questões humanamente complexas, que envolvem a efetividade da penalização, a mentira como saída possível e o peso arrastado para que ela se mantenha até que comece a se tornar insustentável.
A escolha entre contar a verdade e mentir vai influenciar diretamente no caráter do filho de Sándor, e nenhuma das alternativas parece ser o caminho certo. O diretor vai muito além da correção das escolhas dos personagens, instigando questionamentos e julgamentos, ainda, sobre a influência do pai nas atitudes do filho, e como os erros de um refletem os equívocos e instabilidades do outro.
Growing Down caminha da esperança de uma nova família feliz (uma melancolia disfarçada de alegria, a fotografia em preto e branco como ponto de dúvida), já que o protagonista é um viúvo que encontra na noiva a renovação do impulso para a vida, para o choque e tensão crescentes, ao ponto do estouro e do desespero do espectador.

La Cache
Dir. Lionel Baier
País: França, Luxemburgo, Suíça
Nota: 3
Um retrato específico e direcionado de Paris em maio de 1968, consciente de si mesmo como filme. La Cache (The Safe House) aproveita sua autoconsciência para construir o contexto político e situá-lo num microcosmo familiar sob o ponto de vista da memória infantil de um garotinho de 9 anos. Rodeado de familiares e muito conectado com sua bisavó, uma ex-bailarina vinda de Odessa, o garotinho se diverte no lugar seguro representado por sua casa, e lida, com um tanto de fantasia, com medos e incertezas provenientes de uma cidade em conflito por protestos estudantis.
Com uma estética colorida e ares de Amélie Poulain, o diretor Lionel Baier não tem qualquer intenção de retratar uma realidade incontestável, mas de apresentar a verdade única e exclusiva daquela família. A perspectiva infantil vai lhe permitir a inserção de números musicais, a interação dos personagens com a câmera e de um caos confortável e agridoce que vai criar uma atmosfera melancólica e que, ao mesmo tempo, parece abraçar tanto quanto uma avó.

A Melhor Mãe do Mundo
Dir. Anna Muylaert
País: Brasil
Nota: 3
Se mulheres pretas já ocupam a base da pirâmide social, mulheres pretas catadoras de recicláveis estão, nessa escala, posicionadas em lugares tidos como ainda mais desvalorizados: interseccionam-se fatores de gênero, raça, classe social e profissão numa sociedade que relega pessoas ao status de coisas. Essa mesma mulher, por sua estigmatização, é, geralmente, a primeira a sofrer violência. Mulheres negras são as maiores vítimas de violência doméstica e estupro. Em A Melhor Mãe do Mundo, novo filme de Anna Muylaert que fez estreia mundial na mostra Special Gala no 75º Festival de Berlim, Gal (Shirley Cruz) é, justamente, uma mulher preta catadora de recicláveis, mãe de duas crianças e vítima de violência doméstica, que vai dar voz a essas que, como ela, não encontram o mínimo sequer para serem protagonistas de suas próprias vidas e lutam duramente para livrarem-se de relações abusivas e mudarem suas realidades.
A representatividade de Gal nas telas é, de fato, o maior presente de Anna Muylaert em A Melhor Mãe do Mundo. Mulheres como ela passam a se verem e serem vistas, e histórias como as suas são refletoras de uma violência cíclica, normalizada, de realidades que, vistas de fora, são de difícil compreensão: por que uma mulher vítima de violência doméstica persiste num relacionamento abusivo? Quais os motivos que a impedem de se libertar dessas prisões? A solução que parece simples (ir embora) torna-se quase impossível de ser praticada. A violência física geralmente vem acompanhada de outras formas muito mais complexas de serem enxergadas, em destaque, a psicológica, a patrimonial e a moral. Falando de uma realidade brasileira, estamos tão acostumadas a sermos violentadas que existe uma tolerância e um esforço social para que não percebamos determinadas situações. Ele é um homem trabalhador, ele coloca dinheiro em casa, ele é pai dos meus filhos, eu o amo, são algumas das muitas justificativas que impedem que mulheres se visualizem em suas próprias misérias. (…)

Ari
Dir. Léonor Serraille
País: França, Bélgica
Nota: 3
Na cena inicial de Ari, o personagem-título, que é professor infantil, está inserido numa situação de absoluta pressão, se vendo incapaz de exercer seu próprio ofício: sendo avaliado por seu inspetor, ele colapsa em uma crise de pânico, incapaz de dar continuidade à sua aula. A diretora Léonor Serraille nos coloca, como espectadores desse doloroso constrangimento, em angústia e compaixão pelo protagonista em notório sofrimento.
Ari, na solidão, após buscar auxílio no pai que o rejeita, vai deambular pela cidade enquanto lida com as dores de uma sugerida crise existencial, e aos poucos, vai encontrando em pessoas queridas situações tão complicadas como a sua, e compreendendo, assim, através do olhar ao outro, seus próprios questionamentos.
É bonito como o protagonista encontra, nas pequenas coisas, prazeres que vão preenchendo seu vazio, como, por exemplo, quando caminha pelas águas de uma fonte pública, quando segura um bebê no colo como uma grande descoberta – sua afinidade e carinho com crianças é tocante – ou mesmo, quando relaxa em uma banheira. A diretora se deixa levar por certas incoerências na jornada de Ari que concedem à melancolia favorável do filme um ar de esperança um pouco forçado demais, mas que não prejudica a ternura de nosso olhar sobre o personagem e sua visão de mundo.

The Old Woman with the Knife
Dir: Min Kyu-dong
País: Coréia do Sul
Nota: 3
Em The Old Woman with the Knife (Pa-gwa), a mulher idosa do título é uma assassina de aluguel lendária, cuja especialidade é eliminar aqueles que seriam considerados vilões e criminosos. Aos sessenta anos, está prestes a se aposentar, mas sem antes vivenciar um acontecimento em seu ofício que faz sua vida tomar rumos inesperados, ao conhecer o jovem Bullfight, também assassino, que intenciona trabalhar com ela.
O diretor Min Kyu-dong constrói um cinema de ação, digamos, de superação. Ocupando um espaço que geralmente pertence a homens, insere uma protagonista feminina sexagenária, cuja idade vai fazê-la enfrentar tudo com uma exaustão que ela tenta e consegue vencer, evidenciando o etarismo e não nos permitindo perder a empatia e a conexão com ela, muito embora assassina de aluguel, e utilizando-se de elementos dramáticos convencionais ao gênero, atribuindo um peso e uma justificativa maior às suas ações (por exemplo, a necessidade de proteger a neta). The Old Woman with the Knife é um filme de ação bastante protocolar, que trilha caminhos mais feministas, mas que cumpre sua função com decência – não, necessariamente, excelência.

Hora do Recreio
Dir. Lúcia Murat
País: Brasil
Nota: 3
Ao som de uma canção funk carioca empoderada, Hora do Recreio, a curiosa câmera de Lucia Murat passeia sobre dois espaços. Alterna-se entre uma galeria de arte que expõe pinturas que reproduzem pessoas negras, e acompanha, concomitantemente, a rotina diária de crianças, em sua maioria pretas, à caminho da escola, em destaque de suas mochilas grandes e seus cabelos crespos. Os cabelos, presos ou soltos, encontrarão seus semelhantes nas pinturas, e com muita energia a diretora vai costurar esse ritmo alternado, corpos pretos infantis e corpos pretos gravados na tela.
A agilidade com que Murat inicia Hora do Recreio acompanha a urgência do pensamento e do anseio daqueles que lhe interessam no documentário: crianças e adolescentes cariocas frequentadoras das escolas situadas nas periferias do Rio de Janeiro, locais onde o ensino público é sucateado, em que pesem os esforços descomunais dos professores, e onde as aulas são suspensas quando há operação policial que coloca vidas em risco em razão das trocas de tiros. A diretora vai dar espaço para que esses seres em formação falem sobre problemas inerentes às suas existências e classe social, por meio do direcionamento dos educadores que as instiga com questionamentos que vão se aplicar a todas elas. Experiências pessoais e familiares com racismo, violência de gênero em todas as suas formas, pobreza, abandono, falta de oportunidade de trabalho, são assuntos oralizados, explorados e que vão puxando um ao outro como um fio. (…)

El Mensaje
Dir. Iván Fund
País: Argentina
Nota: 2,5
Anika (Anika Bootz) posa sorrindo para a foto defronte a uma placa de publicidade que anuncia um cemitério de pets, denominado El Cielo. Quem tira as fotos e orienta a menina é uma mulher que não sabemos se trata-se de sua mãe ou não. O que fica nítido, nesses minutos iniciais de El Mensaje, dirigido por Iván Fund, filme argentino da competitiva da 75ª Berlinale (representante do cinema latino-americano ao lado de O Último Azul) que recebeu o Urso de Prata do Prêmio do Júri, é que um produto está sendo vendido e a garota é o principal objeto dessa transação. Vamos compreendendo que o produto é, na verdade, uma prestação de serviços, e a atividade negociada é paranormal: Ani, como carinhosamente é chamada, é uma espécie de médium mirim com o dom de se comunicar com os animais, e, com isso, trazer à luz as mensagens que eles não são capazes de transmitir.
Ani reside com seus tutores (ao que tudo indica, não são seus pais), Myryam (Mara Bestelli) e Roger (Marcelo Subiotto), num trailer, e eles integram o negócio mantido às custas da menina. Se são charlatões, não sabemos ao certo, e El Mensaje vai permanecer na ambiguidade quanto ao caráter dos adultos. Entretanto, há a certeza de que a sensibilidade e conexão da menina com os bichinhos, de algum modo, é real, e de que é ela quem provê, com sua aptidão, o sustento daquele modelo familiar. (…)

Lurker
Dir. Alex Russell
País: Estados Unidos, Itália
Nota: 3
Alex Russell certamente bebeu da fonte de Quase Famosos para que seu Lurker nascesse. A inspiração, nem de longe, traz equivalência aos longas. Na presente obra, Russell vai trabalhar com o protagonista Matthew (Théodore Pellerin), que se insere no círculo de amizades do popstar Oliver (Archie Madekwe) sob o pretexto de filmar um documentário sobre o artista, ganhando, aos poucos, a confiança de todos ali. O tensionamento surge quando logo ele percebe que pode ser facilmente dispensado do grupo, o que faz crescer um jogo de manipulação, obsessão e suspeitas entre os personagens.
Lurker lida com as concomitantes atração e repulsa entre Matthew e Oliver. Toques, olhares e brincadeiras de conotação sexual vão evidenciar um latente desejo físico entre os personagens, mas que se contrapõe com a estranheza gerada pela desconfiança crescente no mundo da fama.
Há de se reconhecer que é interessante como a câmera de Matthew, muitas vezes, se torna o próprio filme que vemos. O aspecto documental trazido pelo uso da metalinguagem modifica a qualidade da imagem que nós, como espectadores, visualizamos, o que torna dinâmica a movimentação da direção e as decisões de montagem. Incomoda um tanto que, em sendo Oliver um homem negro e Matthew um homem branco, uma leitura possível torna algumas manipulações entre eles um tanto complicadas sob a perspectiva de raça.

Hot Milk
Dir. Rebecca Lenkiewicz
País: Reino Unido
Nota: 2,5
Nada mais simbólico e hábil a representar, imageticamente, as prisões interiores do ser humano do que a própria cadeira de rodas. A pessoa cuja locomoção torna-se adstrita a tal objeto perde, dentre tantas outras coisas, principalmente, sua liberdade. Depender de um instrumento ou de outras pessoas para tarefas básicas e rotineiras é, de fato, um grande fator de aprisionamento de corpos. Hot Milk, dirigido pela britânica Rebecca Lenkiewicz e integrante da mostra Competitiva da 75ª Berlinale, vai lidar com o confinamento feminino em sua forma literal, através de Rose (Fiona Shaw) e de forma indireta, por sua filha, Sofia (Emma Mackey), que vai encontrar um contraponto e um incentivo à autoreflexão diante da viajante Ingrid (Vicky Krieps).
Essas três mulheres vão se encontrar em Almería, na Espanha, durante um verão ensolarado e escaldante. Rose (Shaw) é portadora de uma doença misteriosa e sem diagnóstico preciso, que a limita à cadeira de rodas, mas que lhe permite dar alguns passos em situações específicas. Ela e sua filha procuram, na cidade espanhola, tratamento alternativo na clínica mantida por Gómez (Vincent Perez), um profissional que se propõe a encontrar a raiz do problema de Rose para traçar sua cura – e tal origem parece, ao que tudo indica, ser traumática. O tempo de Sofia, jovem e cheia de vida, é ocupado pelos cuidados demandados (física e psicologicamente) por sua mãe, uma figura exigente que parece oportunamente não enxergar o espaço que ocupa na vida da filha. Numa tarde na praia, Sofia encontra Ingrid, como uma princesa encantada de espírito livre – linda, montada num cavalo. As duas vão firmar uma conexão imediata e iniciar um relacionamento estranho, movido à atração, espelhamentos, impulsos e provocações na mesma medida. (…)

Mother’s Baby
Dir. Johanna Moder
País: Áustria, Suíça, Alemanha
Nota: 2,5
Dar pistas sobre o que veremos a partir do desenrolar das tramas fílmicas faz parte da construção de roteiros, que transformados em imagem, dão azo a um universo de possibilidades que permitem ao cineasta brincar e enriquecer narrativas com sinais, detalhes mais minuciosos ou nem tanto, que podem vir sob a forma de qualquer elemento que faz um filme: um diálogo, uma objeto de cena, um gesto, uma aproximação de câmera, um posicionamento de personagem, um som. Debruçar-se sobre obras cinematográficas em busca desses rastros faz parte dos estudos de cinema, do trabalho da crítica e da diversão da cinefilia.
É fato que o uso de tal recurso pode fazer com que uma obra caminhe para o brilhantismo, para a elevação de seu status. Um Corpo que Cai, de Alfred Hitchcock, é um grande exemplo de narrativa construída nesses moldes, cujos pormenores são, ainda hoje, autopsiados com paixão e entusiasmo, tamanha e indiscutível sua genialidade. No entanto, na mesma medida, pode provocar seu fracasso. Mother’s Baby, da diretora austríaca Johanna Moder, é justamente esse paradigma falho: o excesso de vestígios leva não só à obviedade (o que, por si só, não seria um problema), mas também e principalmente, ao lamentável abobalhamento de uma trama que se propõe seriedade.

The Light
Dir: Tom Tykwer
País: Alemanha
Nota: 2,5
Quando The Light, novo longa de Tom Tykwer, termina, parece que estamos, ainda, na expectativa de que algo aconteça. O diretor insere tantos elementos e tantos acontecimentos, perpassando por gêneros dos mais diversos (terror, musical, comédia, drama), que não há mais espaço para estranhar o inusitado. Para isso, ele nem precisa de muitos personagens: uma família típica de classe média em decadência – a mãe, o pai, um casal de gêmeos e um filho de outro relacionamento da mãe, que não convivem e não dialogam – precisam lidar com a morte súbita da empregada doméstica e a busca por outra que a substitua, encontrando a escolha ideal numa imigrante síria, Farrah (Tala Al-Deen).
Farrah é a luz do título de muitas maneiras. Tom Tykwer a transforma em ponto de salvação de cada um daqueles familiares. Ela é capaz de extrair deles suas emoções e desabafos, ajudando-os a reconectarem-se novamente. Curiosamente, ela o faz não só através da psicologia e do acolhimento, mas também através de um dispositivo sobrenatural que faz emanar uma luz piscante, capaz de causar um transe revelador.
Ao não assumir nenhum dos gêneros que sugere, The Light mostra-se muito desejoso de tudo, para o alcance, infelizmente, de pouca coisa. Os números musicais são desajeitados e por isso mesmo divertidos, mas o diretor não se contenta com o mero divertimento. Imprime uma seriedade, principalmente, no tratamento da imigração, que vai transferir a função de salvadora assumida por Farrah para a família, o que é contraditório às subversões que ele parece buscar ao inseri-la gradativamente naquele seio familiar e torná-los dependentes dela.

Dreams
Dir. Michel Franco
País: México, Estados Unidos
Nota: 2
Sonhos. Quantos almejam o falho sonho americano? Quantos sonham por uma vida melhor em solo estadunidense? Dreams, novo longa de Michel Franco e uma grande expectativa da competitiva da 75ª Berlinale, principalmente, por carregar o nome de Jessica Chastain como protagonista e produtora executiva, não tenta ocultar a temática já inserida no título. Jennifer (Chastain) é uma socialite e filantrópica de uma grande instituição que presta auxílio a imigrantes mexicanos, da qual ela, seu pai Michael (Marshall Bell) e seu irmão Jake (Rupert Friend) constituem frente. A impecável, belíssima, sempre bem vestida e moralmente inquestionável mulher dessa entidade familiar vê sua estabilidade abalada com a chegada (ilegal) aos Estados Unidos de seu amante, Fernando (Isaac Hernández), um jovem mexicano, bailarino que sonha com carreira internacional e deixa seu país em busca desse objetivo. A intensa e obsessiva relação do casal vai fazer com que ela oscile entre mantê-la a todo custo e, outrossim, escondê-la de todos, o que deixa Fernando incomodado. O conflito entre eles, as idas e vindas regadas à tesão e desprezo, orgulho e paixão fervorosa, vão ser mote da trama, até que a temática da obra faça suas vezes para causar a elevação e queda dos personagens – e os efeitos vão pender apenas para um deles.
Michel Franco, cineasta mexicano, se propõe a abordar um tópico do qual ele guarda lugar de falar. O sistema de repressão à imigração para os Estados Unidos é estratégico e predatório, e tratá-lo em tempos de Trump é um tanto delicado. O espaço que o diretor ocupa, portanto, como imigrante, poderia dar contornos mais seguros à Dreams. Pelo menos, esse seria o esperado. Não se quer aqui, de forma alguma, afirmar que determinados assuntos só podem ser versados por aqueles que possuem voz representativa, mas é inquestionável a presença desse fator enriquece a arte sobremaneira, principalmente por fazer refletir um pensamento plural que geralmente não é visto em obras cinematográficas, que são, não há como negar, predominantemente brancas e masculinas. (…)

The Ice Tower
Dir. Lucile Hadžihalilović
País: França, Alemanha, Itália
Nota: 2
A musa inspiradora e seus idólatras. A princesa e a bruxa. O mundo real e a fantasia. A mãe e a filha. Todas essas relações, de algum modo, interconectam-se aos contos de fadas infantis, e implicam dualidades que funcionam como espelho. Em La Tour de Glace, dirigido e roteirizado por Lucile Hadžihalilović, e que recebeu o Urso de Prata por notável contribuição artística na 75ª Berlinale, busca unir esses retratos idealizados num estranho jogo de amadurecimento que vai começar pela curiosidade de Jeanne (Clara Pacini), uma adolescente de 16 anos que foge de uma espécie de orfanato onde vive nas montanhas, encontrando abrigo na cidade, num estúdio onde é rodado o filme The Snow Queen, personagem-título vivida por Cristina (Marion Cotillard), uma atriz-diva por quem a jovem é obcecada. Depois de ser descoberta em seu refúgio, a garota começa a trabalhar no filme como figurante, e conhece, diretamente, sua ídola. Uma mútua fascinação surge entre elas, personagens e pessoas reais se mesclam ao ponto do apagamento dos limites da fantasia.
O visual impresso por Lucile Hadžihalilović é, talvez, o que justifica, fundamentalmente, a existência e a condução de La Tour de Glace. Todo o restante, dos personagens à trama, é moldado a partir do estúdio que guarda o cenário alvo e gélido, encoberto pela neve falsa que também cai sobre as árvores desprovidas de folhas e sobre o castelo de gelo onde reina a rainha. O que não é muito claro, pálido e enevoado, é sombreado, escuro, como se um esconderijo, um espaço de ocultação de coisas e situações que não podem ser trazidas à tona. Em que pese apenas um desses dois bem definidos lugares seja destinado ao filme dentro do filme, The Snow Queen, as relações são muito cênicas, e por isso mesmo, dotadas de certa desconfiança. (…)