Vitória | 2025

O combate ao crime vindo por detrás da persiana
Talvez uma das maiores dificuldades na análise fílmica seja separar o que gostaríamos que o filme fosse, com o que, de fato, ele é. Parece que este “dilema” fica muito latente ao pensarmos sobre Vitória, filme baseado em uma história real (a vida de Joana da Paz), dirigido por Andrucha Waddington, estrelado pela imortal Fernanda Montenegro, que estreou neste mês de março de 2025.
O filme retrata a vida solitária de Nina (Fernanda Montenegro), uma idosa que mora sozinha próximo a uma favela carioca. Sua vida, ordinária, vale-se de fazer pequenas amizades nas ruas, como a caixa do mercadinho que costuma fazer compras ou Marcinho (Thawan Lucas), o garoto a quem ajuda com poucos trocados. Contudo, apesar da sua generosidade, ela não passa incólume ao desrespeito que sofre, em virtude de sua idade.
No solipsismo do seu lar, Nina enfrenta um grande problema. São muitas as noites que passa ouvindo barulhos de tiros , reflexo da violência extremada que advém da favela próxima da alameda em que mora. Realiza tentativas, primeiro, na reunião de condomínio, solicitando ao síndico que fizesse algo contra a criminalidade que assolava o bairro. Depois, dirige-se à delegacia de polícia. Tentativas frustradas de tentar aplacar o medo que vem, literalmente, da sua janela.
Parece ser neste momento que Waddington toma, mais claramente, sua opção deliberada em não seguir por alguns caminhos que se abrem na narrativa: não investe em um aprofundamento maior acerca de questões políticas complexas, sobretudo em relação à segurança pública, às políticas criminais, preconceito racial, uso de drogas, etc. Pelo contrário, opta por ficar na superfície, escancarando ao público, principalmente a partir de diálogos pra lá de expositivos, o básico que quer trazer, como por exemplo, que uma parte da polícia está envolvida em casos de corrupção e sua atuação é guiada por preconceitos raciais. Parece que isso basta: este artifício simples é utilizado como alicerce para que o longa-metragem possa orientar-se, com vigor, para os caminhos que realmente quer seguir, que envolve a criação de uma tensão constante e bem construída e a elevação das atuações de Fernanda Montenegro e do “elenco de apoio” que desempenha maravilhosamente bem o seu papel: Linn da Quebrada, Alan Rocha e Thawan Lucas.
Destaco, dentre eles, a atuação de Linn da Quebrada que interpreta Bibiana, vizinha de Nina, por quem tem carinho e afeto e quem divide os mesmos medos decorrentes da proximidade de balas perdidas e afins. É exultante ver na tela a química que há entre as duas atrizes.
Ainda assim, parece que Vitória se perde em algumas aparentes contradições. Ao mesmo tempo que a personagem principal adota uma postura de completa descrença “nas autoridades” e até mesmo tratá-as de forma arredia (o que é “legitimado” por sua idade avançada e sua ranzinzice), é a elas a quem recorre na busca pelo combate à criminalidade, o que, por certo, não combina com esse seu aparente desprezo pelas vias institucionais.
Esta contradição parece servir de combustível para o grande mote do filme, que é a construção do papel da heroína. Nina, cansada de “lutar contra o sistema” que a ela nega auxílio, decide comprar uma câmera filmadora e, por trás da persiana de sua janela, passa a filmar as condutas delitivas da sua vizinhança (o filme se passa nos anos 2000, época que os celulares não eram dotados de câmeras potentes, como hoje). Nesta empreitada, acaba por conhecer o repórter policial Flávio (Alan Rocha) que a ajuda nesta tarefa de bem documentar e conseguir provas robustas contra os criminosos que tiram seu sono.
A aposta na jornada da heroína que contra tudo e contra todos, a partir do seu trabalho vigoroso, ininterrupto e solitário, aventurando-se em searas perigosas, submetendo-se a altos riscos, funciona muito bem (reitero: é por este caminho que o filme quis seguir e é bem sucedido nele), por dois motivos em especial: a atuação soberba de Fernanda Montenegro e o notável nível de tensão que a narrativa alcança, principalmente quando a protagonista, idosa, está em perigo.
Assim, o “final feliz” faz eclodir na plateia a boa sensação da vitória do “bem” sobre o “mal”, de “quem fez por merecer”. Parece que havia plena convicção que esta opção pelo formulaico poderia “apostar” na conhecida capacidade de atuação de Fernanda Montenegro para fazer o filme subir de patamar, a despeito dos reducionismos. Desta feita, ainda que Vitória pudesse abordar com a devida complexidade os sérios problemas que traz em sua narrativa, não o faz por uma opção da direção, que prefere fazer com que o filme seja mais “palatável” ao espectador, no que se pode dizer que, sim, teve êxito neste propósito.