Abode of Dawn | 2024

Abode of Dawn | 2024

Os seguidores do Jesus Siberiano

No alto de uma isolada montanha na Sibéria habita Vissarion, homem que se autointitula o novo Messias, o Cristo que, assim como Jesus, teria sido enviado para preparar o povo à chegada de Deus, seu pai. A seus pés, a partir da década de 1990, formou-se uma comunidade, atualmente com cerca de 4 mil pessoas que cultuam o “último testamento”, conjunto de 18 livros sagrados escritos por ele que doutrinam a nova religião. Abode of Dawn, documentário de Kristina Shtubert, não tem seu foco nessa figura messiânica, mas sim nas pessoas que tiveram sua fé despertada por ele e passaram a idolatrá-lo. O que pensa alguém que mudou sua vida habitual para seguir os passos de um profeta?

As filmagens de Shtubert iniciam em 2014, quando entrevista algumas crianças que brincam em um vagão abandonado, perguntando-lhes sobre suas famílias. São filhos que já nasceram na crença em Vissarion, que contam aquilo que seus pais acreditam e funcionam como guia para as imagens seguintes. Descobrimos, então, o vilarejo Abode of Dawn (morada do amanhecer, em tradução literal), na gélida paisagem siberiana, com casas simples de madeira e um belo templo religioso ao centro.

Ao longo de 8 anos acompanhamos a vida de alguns personagens deste lugar: um casal com um bebê, uma adolescente que nasceu ali, mas parece não ter a mesma crença dos mais velhos, e uma idosa de fé inabalável na palavra do novo Cristo. Há também algumas pessoas que nos contextualizam da história, sejam trabalhadores construindo casas para os novos seguidores, ou apenas fiéis que organizam os cultos, indicando que o messias ainda atrai devotos.

Esta primeira parte do filme é eficiente em estabelecer o mistério em torno do lugar, partindo do cerne da religião: entregar-se àquilo que não se vê, mas se sente. Revela-nos pessoas que abandonaram a desesperança para ver naquele homem a salvação, retratadas sem julgamentos, reconhecendo a honestidade em seus olhares. A diretora assume tal neutralidade para fazer de sua obra muito mais um estudo sociológico sobre o fenômeno religioso do que uma investigação factual.

Na casa da idosa vemos o fanatismo. Ela mantém um altar com fotos de Vissarion e tem prazer em falar sobre seus ensinamentos. Justifica sua crença como o objetivo necessário para se viver. Não o questiona em momento algum, nem mesmo quando conta sobre os relacionamentos do dito profeta com várias mulheres da comunidade. Tudo que ele fala e faz constitui a ela seus dogmas e representam um propósito divino.

Com o casal temos a mesma fé cega, mas com elementos que a questionam imediatamente, pelo menos para o espectador. O patriarcado e a misoginia se mantêm ali da mesma forma que do lado de fora do vilarejo. O marido é agressivo e relega à esposa as tarefas da casa e os cuidados com a criança, enquanto ele deveria se dedicar exclusivamente à espiritualidade e ao trabalho na lavoura. Entre eles não há amor, apenas a constatação de que o modo em que vivem é como deve ser para estarem junto de uma figura tão mítica quando Vissarion.

A rebeldia adolescente traz consigo a dúvida. Mesmo tendo sido criada naquela cultura desde sempre, não há crença total. A jovem tem a curiosidade de alguém que quer conhecer o mundo fora dos limites da montanha, de quem não se contenta com a vida regrada daquele lugar e precisa visitar novas realidades. E é o que faz, quando sai de comunidade para a cidade, mas acaba no vício das drogas e é internada em uma clínica de reabilitação.

Por mais que não assuma um posicionamento claro em Abode of Dawn, Shtubert constrói essas ambiguidades que inserem ironia às histórias que conta, tendo seu ápice quando entrevista brevemente o próprio Vissarion. Ao fazer-lhe uma pergunta complexa sobre seu papel ali, o que recebe é apenas uma resposta evasiva e um sorriso do homem que se levanta e sai. Em nenhum outro momento do filme temos essa frontalidade com o Jesus reencarnado que se mantém como “verdade inacessível”.

Em 2020 acontece um evento que poderia ser devastador ao vilarejo: o exército russo chega e leva o profeta preso, alegando abuso financeiro e psicológico de seus fiéis. Dois anos depois, a diretora retorna ao local, agora sem a presença do líder e quase sem nenhuma mudança. Restam ali pessoas sem rumo, mas ainda esperançosas. Permanece o dilema da fé, com pitadas de hipocrisia, o que não escapa às estruturas sociais milenares que construímos.

Abode of Dawn foi o vencedor da mostra NEXT:WAVE no CPH:DOX, e, apesar da falta de ousadia, é um documentário interessante do ponto de vista antropológico e teológico, onde o Jesus do mundo globalizado não é revolucionário e acaba preso por extorsão.

Nota:

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