As Primeiras | 2024

A história em torno da primeira seleção brasileira feminina de futebol a jogar um torneio FIFA
Quem não tem dinheiro, conta história. Essa é uma frase dita já na parte final de As Primeiras, longa metragem de Adriana Yañez sobre a primeira seleção brasileira de futebol feminino do Brasil, modalidade que era proibida no Brasil até 1941, por ser um esporte “incompatível com a natureza da mulher”.
As Primeiras debruça-se sobre as protagonistas dessa história, as jogadoras do selecionado nacional. De forma mais específica, gira em torno de Mariza, Maria Lúcia (também conhecida como Fia), Rosilane (cujo apelido é Fanta) e Marilza (conhecida, também, como Pelezinho), jogadoras que fizeram parte da seleção brasileira de futebol feminino no torneio (ainda experimental) organizado pela Fifa e realizado na China no ano de 1988.
Em As Primeiras, a direção opta por colher depoimentos de cada uma destas jogadoras, ora individualmente, apontando como desenrolaram suas vidas após a aposentadoria como jogadoras, ora colocando-as todas juntas para rememorar boas histórias enquanto assistem à Copa do Mundo de futebol… masculino.
Há muita coisa para além do que é dito. São muitas as nuances que envolvem o longa e que, apesar de não serem colocadas de forma expressa, chamam a atenção do espectador, ainda que pouco habituado com o “mundo do futebol”.
Sendo impossível dar conta de todas elas, chamarei atenção de duas delas. As vidas destas jogadoras, hoje em dia, certamente estão muito longe de todo glamour e riqueza que pensamos haver na rotina de jogadores da seleção (masculina) de futebol.
Pelo contrário, após a aposentadoria dos gramados, suas condições financeiras foram muito pouco ou quase nada alteradas: essas mulheres continuam vivendo em comunidades carentes, em moradias precárias e, muitas, atualmente, trabalham em empregos informais, seja sendo motoristas de Uber, vendedora de lanche nas ruas ou dando aulas de futebol em quadras públicas.
Essa reflexão acaba por se conectar a outra. De acordo com a Confederação Brasileira de Futebol, em estudo realizado em 2016, 80% dos jogadores de futebol, homens, no Brasil, ganhavam até mil reais. Em 2021, a partir de estudo com dados da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), Statista e Ernst & Young, estimou-se que mais da metade dos jogadores de futebol masculino recebiam aproximadamente um salário mínimo. A realidade é que apenas um fração diminuta dos atletas profissionais de futebol possuem salários exorbitantes. A maioria peleja em campeonatos mais modestos jogando por equipes com orçamentos pra lá de enxutos.
Contudo, quando pensamos em jogadoras(es) de seleção brasileira, pensamos em uma elite esportiva, afinal, são atletas que se destacaram de sobremaneira no “país do futebol”, disputando com inúmeras outras jogadoras(es).
Para os homens, estar neste seleto grupo quase sempre significou uma notoriedade nacional e um aumento substancial na conta bancária. Para estas mulheres, chegar na seleção brasileira não trouxe essas implicações. Digo “estas”, porque sei que tem havido no Brasil um trabalho de fortalecimento do futebol feminino e, mais que isso, jogadoras brasileiras passaram a ser contratadas por equipes estrangeiras, que acabam por pagar salários maiores, ainda que a equiparação salarial ainda esteja muito distante.
As falas de Marilza, Mariza, Rosilane, Maria Lúcia e Leda estão entremeadas por diversos temas correlatos: são trazidas questões como a dificuldade do pai em aceitar que fosse jogadora de futebol, a sensação de não pertencimento em jogar em bairros nobres do Rio de Janeiro, até mesmo o uso de drogas (que até a própria torcida tinha conhecimento), a depressão após o fim da carreira como jogadora e a necessidade de se ter um segundo emprego para sustentar-se (caso de Leda, jogadora que não pôde jogar o campeonato na China, representando o Brasil, porque não podia ser demitida da serigrafia em que trabalhava).
Nas cenas em que estão juntas, relatam, ainda que com muito bom humor, diversas situações lamentáveis pelas quais tiveram que passar e que são quase que inacreditáveis, como as dificuldades materiais enfrentadas durante o Torneio Experimental da China, que envolveram alimentação precária, ausência de descanso e péssimos materiais esportivos.
Cada história individualmente relatada, se conecta com as outras nos temas mais abrangentes, mas traz as peculiaridades de cada ex-atleta, o que traz um cariz humano muito positivo ao filme. Neste sentido, é impossível não mencionar a fala de Fia, de que “meu futuro já foi”, ao dar conta de que, daqueles tempos de atleta, só restaram memórias e que o futuro não parece ser alvissareiro.
A segunda nuance que quero destacar em As Primeiras, parece ser mais singela, mas esconde bastante força. Refiro-me aos apelidos das atletas: “Fia”, “Fanta”, “Pelezinho”, etc. Ao pensarmos nos grandes nomes do futebol brasileiro masculino nacional, nos deparamos com: Pelé, Garrincha, Manga, Zico, Tostão, entre inúmeros outros.
O uso dos apelidos diz muito sobre o que o futebol brasileiro foi e isso parece estar conectado a uma “parte boa” desse certo “amadorismo” de outrora: a amizade entre os atletas e, acima de tudo, o amor ao jogo prevalecendo sobre questões puramente financeiras.
Não é querer romantizar a precariedade e a falta de remuneração justa à essas atletas, mas em As Primeiras há um quê de nostalgia muito bonito, que chama atenção para uma época que o futebol brasileiro era muito mais brasileiro, uma vez que muito mais vinculado ao povo e à cultura popular (ainda que tenha me chamado atenção que só são feitas menções à atletas sudestinas e nordestinas).
Assim, Adriana Yañez realiza o filme a partir de uma estrutura bastante convencional e que se alicerça no bom humor e nas interessantes histórias das protagonistas. A repetição na forma (formulaica) como desenrola o filme acaba por torná-lo, certas vezes, enfadonho, prejudicando até mesmo o bom humor muitas vezes trazido pelas personagens às telas.
As Primeiras é um filme sobre memória, uma memória que é importantíssima de ser resgatada, um tributo a estas mulheres tão importantes para a história do futebol brasileiro e que se encerra de um forma tão bonita quanto emocionante: em uma partida de futebol feminino.