Ritas | 2025

Ritas | 2025

Ritas se mostrou, pessoalmente, a redescoberta de um grande amor. Veio como uma chama que aguardava, e talvez até ansiava, por ser reacesa, como um despertar das raízes da personalidade e feminilidade que construíram o ser que é, hoje, essa que vos escreve. Minha relação com Rita Lee iniciou muito cedo na infância, principalmente, por influência de minha mãe, sua fã. Sempre ficava um tanto impressionada quando mamãe dizia já ter ido a um show da multiartista. Na década de 1990, para uma mulher residente no interior de São Paulo e vinda de uma família conservadora, como minha mãe, presenciar um show de rock era um grande feito. Para uma criança de menos de 10 anos, é conhecimento capaz de modular a preferência musical para toda uma vida.

“Minha vida foi o máximo” é frase de Rita Lee Jones de Carvalho que o diretor Oswaldo Santana consegue imprimir em Ritas quase como mantra imagético. Em que pese muito recentes as dores da perda da cantora, cuja morte completará dois anos em maio, não há melancolia e muito menos tristeza na obra documental. Prevalece, de fato, o oposto: o bom humor, o otimismo, a leveza, a paixão e o tesão pela música e pela vida, elementos que refletem a própria Rita. Melhor dizendo, as próprias Ritas, no plural. Rita era multiartista (cantora, compositora, escritora e apresentadora de TV) e multifacetada, cuja capacidade de criar muitas versões e personagens de si mesma a permitiram equilibrar-se entre o sucesso na música e a vida tranquila que ela pôde levar fora dos palcos.

O documentário-homenagem, como é o caso de Ritas, inegavelmente carrega certa responsabilidade de representar a essência e a intimidade de seu homenageado. Nesse sentido, a obra de Oswaldo Santana dialoga com Fernanda Young: Foge-me ao Controle, belíssimo filme de Susanna Lira, de muitas maneiras. Ambas as mulheres, Rita e Fernanda, que, inclusive, compartilharam inúmeros projetos artísticos, eram possuidoras de personalidades marcantes e presenças que impactaram e dominavam seus espaços, e portanto, preenchem as telas e completam com facilidade qualquer vazio criativo, de modo que não há, em nenhuma das obras, qualquer monotonia. Ainda que realizadas por abordagens muito distintas (Lira adota um tom muito mais poético e melancólico, em fidelidade à Young), se comunicam no tratamento muito feminino dado às imagens de arquivo e na atribuição dada à psicodelia para distorcê-las e sobrepô-las. No caso de Ritas, nota-se, inclusive, que a estética psicodélica adotada é aprazível e discreta em comparação à obra musical de Rita Lee e sua aberta relação com psicotrópicos, caminho que finda por tornar o documentário mais acessível, mas que também o faz encaixar num tom mais protocolar.

No mais, a dinâmica temporal adotada por Santana é linear em trajetória musical, mas não, necessariamente, em jornada de vida de Rita Lee. O diretor cuida para que as fases musicais ditem o ritmo e façam fluir o filme, enquanto permite que a própria cantora fale por meio de entrevistas, programas de TV, shows e gravações feitas por ela mesma, já aposentada, em sua casa, rodeada de seus gatos, cachorros, saguis, seu muquifo sagrado e seu Roberto de Carvalho. A multifacetada artista torna-se, em sua vida retirada de sítio, também uma cineasta que registra, do próprio celular, a rotina de sua vida (ela mantinha um instagram um tanto movimentado). Como boa capricorniana, ela se mostra de pés no chão. Ela vê fotos antigas e lamenta o suplício, o calvário que era o vestido de primeira comunhão da Rita do passado, aquela que ficou, depois da música, nas coxias. Ela mostra seus gatinhos enlouquecidos na hora do petisco de requeijão. O muquifo sagrado, o cantinho de paz que ela mantinha para si, é dotado de um altarzinho que ela apresenta, repleto de santos católicos, além de figuras como Bowie, ET – O Extraterrestre, Hebe Camargo, James Dean, Darth Vader e artefatos religiosos de valor sentimental, todos em convivência harmônica.

Se há um elo nessas tantas Ritas, tantos indivíduos num mesmo ser, compartimentada em tantas fases e vivências, esse conector é seu gênero. O ser mulher, o feminino, para Rita Lee, mostra-se um acontecimento fantástico, principalmente considerando os espaços que ela conseguiu ocupar. “Uma mulher com seus ovários pode fazer rock n’roll”, diz a autora do considerado primeiro disco de rock do Brasil – Fruto Proibido, aquela que foi expulsa de uma gravadora após fumar um baseado no banheiro depois de uma reunião com homens engravatados que cravaram que ela não fazia sucesso – conseguindo, em seguida, firmar contrato com a Som Livre. Foi presa injustamente enquanto estava grávida, teve canções censuradas, afrontou policiais em seu show de despedida, batendo no peito: sou mulher, tenho 67 anos, mãe de três filhos e avó de uma neta. Falou abertamente sobre sexo, liberdade sexual e prazer feminino, em suas músicas e fora delas. Sempre foi uma declarada apaixonada por seu marido e companheiro de carreira, Roberto de Carvalho, com quem viveu uma união de mais de 40 anos. Em uma gravação íntima feita por ela no sítio, enquanto o filma cuidando do jardim, ela se declara: “Esse é o cara mais homem que eu já conheci – porque aturou uma famosa, alcóolatra, toxicômana, ex-presidiária por 43 anos.” Mulher, rebelde e romântica, livre e apaixonada.

Rita nasceu loura, sua figura mais serena. Ficou ruiva, o marco de sua vida e carreira – o sol na cabeça. Assumiu o branco, no que ela reconhece como melhor fase de sua vida, ao envelhecer – a lua na cabeça. Aquela que representa a mais completa tradução de sua terra, São Paulo, que criou tantos personagens sem saber de onde vieram – a Rita que conhecemos é apenas uma delas. Em suas próprias palavras, a mulher que nunca foi um bom exemplo, mas que era gente boa. De tudo que viveu, experimentou, fez nascer e presenteou ao mundo, Rita Lee quis ser reconhecida como a velha louca dos bichos. Que assim seja – que toda loucura seja assim, boa, irreverente e o máximo.

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