Sobre um Herói | 2025

Em tempos em que as animações dos Estúdios Ghibli chegaram ao ChatGPT sob a supostamente inocente ideia de transformar fotografias reais em personagens do universo, angariando, com isso, milhões de usuários à plataforma, o fato de Sobre um Herói, dirigido por Piotr Winiewicz, trazer à baila a discussão sobre o uso da inteligência artificial como recurso substitutivo ao trabalho humano é, num primeiro olhar, bastante oportuno. Ao se propor tratar, em seu documentário, de uma temática tão recorrente e repleta de opiniões públicas e especialistas de internet, o diretor austríaco impõe a si mesmo a tarefa de fugir das vias convencionais do gênero para, tal como as reflexões provocadas pela trend, questionar um ponto específico do uso da IA: é possível considerar arte o que tal tecnologia reproduz? Ou ainda: existe arte sem artista?
Compartimentando o documentário em capítulos, Piotr Winiewicz adentra na discussão apostando na ironia e no bom humor, muito embora o faça através da inserção de uma narrativa metalinguística melancólica. O documentário simula a criação de um filme cujo roteiro é gerado por uma inteligência artificial que teria sido treinada para replicar Werner Herzog. Sobre um Herói cria ilusões ao se alternar entre evidenciar a própria linguagem através da obra que a IA concebe, e o que seria o documentário propriamente dito. O tom de deboche se perpetua de modo que o próprio uso do gênero seja questionado pelo espectador. Pois, se o documentário é, por definição do teórico John Grierson, uma perspectiva da realidade, e não, exatamente, um retrato dela, o filme de Winiewicz nos faz duvidar se há, ali, alguma realidade a ser criativamente tratada.
O roteiro de “autoria” da IA-Herzog retrata um processo investigativo a respeito da morte misteriosa de um operário denominado Dorem Clery no local fictício de Getunkirchenburg. O pretenso Herzog, que reproduz a voz e as ideias do verdadeiro, participa da investigação para discutir, na própria obra simulada, autenticidade, imortalidade e arte através de entrevistas com artistas, cientistas e outros profissionais. Intercala-se, então, aquilo que seria a perspectiva documental com a reprodução do filme criado pela IA-Herzog, bem como o universo derivado de seu interior, numa bolha de acontecimentos que vai aumentando dentro de si mesma.
Se, por um lado, a sobreposição de ocorrências aumenta e instiga a curiosidade do espectador, ao mesmo tempo em que colabora para o dinamismo do documento fílmico e funciona como fuga do que seria um formato mais protocolar ou prioritariamente informativo do gênero, por outro, tais excessos evidenciam certo desespero do diretor pela abordagem de muito, sobre tudo, de uma só vez. Se transita, no decorrer do longa, por um caminho ousado, cai, na finalização de suas reflexões, em um clichê que esvazia e limita a tratativa de um tema já tão exaustivamente abordado.
A esse respeito, Sobre um Herói imprime uma atmosfera de forçada estranheza e ironia para provocar nossa desconfiança e brincar com as possibilidades e capacidades sem fim da IA ao ponto de alcançar reflexões existenciais que se mostram, ao final das contas, o seu primário objetivo. Frases expositivas como “Você confia no que vê?” ou “As máquinas podem machucar?” são ditas pelo investigador-Herzog, que questiona e narra. A razão da morte do obreiro Dorem Clery e sua relação com a máquina que ele operava no trabalho são os motivos da investigação, e num contraponto um tanto óbvio, a vida em si e os sentimentos inerentes aos seres humanos são objeto de estudo do documentário como aquilo que, evidentemente, nos diferencia das máquinas emuladores de raciocínio.
Os falsos depoimentos colhidos a respeito do personagem Clery instigam a busca pelos motivos de sua morte, dentre eles, inclusive, uma participação de luxo de Vicky Krieps, sendo evidente a referência que Winiewicz faz à Cidadão Kane ao fundamentar o filme-artificial nessa sondagem ao redor não só das razões, mas daquilo que seriam os últimos momentos do trabalhador. Sobre um Herói evidencia a relação homem-máquina em artefatos rotineiros: cafeteiras, rádios, fogões, lava-louças – todos são tratados como possíveis vilões dotados de inteligência própria, indicada pela presença de uma luz vermelha. A bizarrice do roteiro escrito pela IA e a estranheza são artifícios que forçam essa vilanização advinda de uma possível racionalidade das máquinas e eletrodomésticos, para culminar na conclusão de sua capacidade sentimental e emotiva, para o bem ou para o mal.
Assim, o aterrorizante e excêntrico mundo dominado por máquinas racionais imaginado pela IA-Herzog encontra o ápice de sua extravagância na atribuição, aos artefatos, de habilidades e peculiaridades muito humanas, como o dar e sentir prazer, o apaixonar-se, e a capacidade de matar outro ser, especialmente numa marcante cena de sexo e prazer feminino. É aqui que, em seus capítulos finais, intitulados Reflexões sobre a Morte e Notas sobre a Alma Humana, desenreda-se o estudo existencial do diretor. Em sua conclusão, é onde parece abandonar o aspecto bizarro de sua construção fílmica, e os excessos se perdem num resultado simplório e pouco memorável, que faz com que Sobre um Herói se torne mais um filme sobre inteligência artificial sem muitas inovações, o que é um tanto contraditório para uma obra que se inicia com potencial de exclusividade.