Pecadores | 2025

A apropriação de elementos definidores da cultura de um povo por outro em condição privilegiada é uma das formas mais sutis e silenciosas de apagamento de características identitárias. Isto porque, à primeira vista, trata-se de uma representação bem intencionada. Num exemplo muito simplório, mas ampla e repetidamente debatido, é a situação do uso de tranças afro e dreads por pessoas brancas. Ou ainda, do uso de vestimentas tradicionais indígenas como fantasias carnavalescas ou infantis. Mais especificamente, outrossim, e adentrando em Pecadores, estreia assinada por Ryan Coogler (Pantera Negra, Fruitvale Station, Creed), podemos falar de Elvis Presley e o embranquecimento do blues. Gradativamente, privilégios e privilegiados sobrepõem-se às culturas originárias ao ponto de causar o desaparecimento de suas raízes – a estratégia, diga-se, veste-se como uma aliada.
Ryan Coogler é um diretor negro com a máquina hollywoodiana nas mãos, com recursos suficientes para filmar seu Pecadores em IMAX e ocupar as melhores telas de cinema do mundo. O faz com seu parceiro de antiga data, Michael B. Jordan, regressando ao território estadunidense segregado da década de 1930, quando pessoas negras tentavam, após 240 anos de escravização e a hostilidade da Klu Klux Klan em retomada, muito em razão do sucesso de D.W Griffith e O Nascimento de Uma Nação, encontrar seu espaço na sociedade e viver de uma forma minimamente digna. No estado do Mississipi, onde os gêmeos Fumaça e Fuligem (ambos interpretados por Jordan) retornam após experimentarem a ilusão da integração e da liberdade racial em Chicago, as poucas oportunidades de trabalho se limitam às fazendas de algodão: a escravização de pessoas negras agora renovada, com roupas limpas e moeda de troca sem valor. A volta dos irmãos, figuras perigosas conhecidas na cidade, tão queridas como temidas, fundamenta-se na esperança de uma nova e melhor vida, que os faz comprar, de um homem branco, um antigo celeiro, para transformá-lo em um sonhado clube de blues, um local de e para pessoas negras.
Nesse contexto, entre as paisagens rurais de beleza triste das plantações de algodão sob amanheceres deslumbrantes e belíssimos contrastes de luzes, as bolinhas tão brancas quanto à igreja evangélica local e as vestes de seus frequentadores, e o pequeno centro em desenvolvimento, formado ao redor da estação de trem com estabelecimentos pertencentes à pessoas negras e imigrantes, há o celeiro comprado pelos gêmeos e há sua razão de existência (para além, claro, a da sobrevivência): o blues. A música não só é o mote de Pecadores, um personagem tão vivo quanto os seres humanos que a criaram como gênero, mas um elemento de natureza transcendental que ultrapassa e conecta tempos e gerações, sobrevivendo, em que pesem todas as tentativas de assassinato. A música é o espírito que não se permite ser apropriado, que se mantém enraizada em suas origens e que precisa, de tempos em tempos, de um portador que a faça reluzir magicamente para causar sensações, florescer sentimentos e conectar pessoas com suas raízes. Ryan Coogler faz dos personagens de Sammie (Miles Caton) e Delta Slim (Delroy Lindo, um deleite de atuação) mensageiros do blues, griôs africanos em solo estadunidense, quase entidades que, em meio ao caos da luta pela sobrevivência digna das pessoas negras, precisam ser protegidas.
A apropriação cultural, conceituada muito brevemente ao início, vem, em Pecadores, na forma de vampiro. Coogler faz, sim, um filme de vampiro, com direito à toda sanguinolência, virilidade e tesão do gênero. Muito embora traga, desde sua introdução, símbolos aparentemente maniqueistas – o blues como música do demônio, a salvação vinda dos signos religiosos, o próprio vampiro como vilão – o filme rejeita a simplicidade das extremidades do bem e do mal. Mesmo porque, o caminho de abandono e marginalização traçado para as pessoas negras pós-escravização demanda a busca por melhorias na qualidade de vida por trajetos outros, por vezes, socialmente condenáveis, em perpetuação do ciclo de segregação. É como se aquilo que é socialmente mal – o roubo, por exemplo – fosse o único caminho de prosperidade possível, quando as alternativas são assumir as margens ou voltar aos campos de algodão. Os próprios Fumaça e Fuligem são representação de tal enredamento, capazes, concomitantemente, de atirar num companheiro negro e custear, logo em seguida, seu tratamento médico.
Se a parceria do diretor com o compositor sueco Ludwig Göransson já se mostrava primorosa em Pantera Negra, em Pecadores ela assume um ápice sublime. O próprio Göransson assume, além da trilha sonora, a coprodução do filme, e essa colaboração mostra-se ponto crucial para que a obra ofereça o blues como esse personagem espiritual. Coogler faz da música o ligamento para criar uma das cenas que certamente já se consolidou como das mais memoráveis do ano (para dizer o mínimo), quando, a partir do som de Sammie, o blues-espírito incorpora pessoas num transe absoluto e que transcende tempo e espaço, que une passado, presente e futuro e os personifica através de músicos e da música. Se o griô africano é o contador de histórias que preserva a cultura da oralidade, o griô de seus descendentes sequestrados e trazidos a solo americano são os pianistas, guitarristas, gaiteiros e DJ ‘s do ontem, do hoje, e do amanhã. Ryan Coogler constroi um júbilo visual e sonoro que preenche as telas do IMAX de modo a nos atrair com um magnetismo que permite entrar naquele transe.
Vampiresco é o homem branco, aqui, pertinentemente demonizado e vilanizado, que, em representação à apropriação cultural, surge com aparência atraente transformando blues em música irlandesa, sutilmente vestindo as raízes negras com branquitude, e angariando seguidores, inclusive, negros, sugando e alimentando-se de seus sangues até o apagamento total. O mal é o homem branco, que enriquece às custas da exploração do trabalho das pessoas negras, que querem impor suas cervejas e vinhos europeus, suas religiões e sua cultura, e tudo que se constroi ao redor dela. Vampiresco é, por outro lado, o próprio blues, quando assume o caráter imortal do mito do horror que se perpetua pela arte e se recusa a morrer. Ryan Coogler assume a máquina hollywoodiana e faz um blockbuster que não tem nenhum, absolutamente nenhum, medo de ser quem é – um griô cinematográfico, portador de arte que rasga os véus da morte e da vida, capaz de evocar espíritos e ser forte o suficiente para jamais se permitir ser apagada.