Pau D’Arco | 2025

Pau D’Arco | 2025

Algumas denúncias necessitam ser transmitidas pelo meio mais democrático possível, seja pela importância de alcance do maior número de pessoas, seja pela polêmica que determinada temática possa envolver. Pau D’Arco, dirigido por Ana Aranha, clama por essa democracia, e a diretora é certeira no formato escolhido para condução de um documentário investigativo que expõe a guerra dos detentores das monoculturas, dos pastos e da agricultura em larga escala contra a reforma agrária e a produção rural familiar, através dos fatos e consequências relacionados ao massacre ocorrido no assentamento da Fazenda Santa Lúcia (ou Pau D’Arco), localizada no Pará, na fronteira com a Floresta Amazônica, em maio de 2017, ocasião em que uma abordagem policial abrupta culminou no assassinato de 10 trabalhadores rurais. 

A Fazenda Santa Lúcia abriga o assento popular Jane Júlio, nomenclatura que recebeu após a carnificina, em homenagem a uma de suas vítimas. O local é morada de 200 famílias, que transformaram, desde a ocupação, terra improdutiva e pasto, em lavoura e reflorestamento, produzindo o suficiente para sustento próprio e fonte de renda. A diretora acompanha os trâmites e efeitos de uma ação judicial de reintegração de posse, movido pelos ditos donos do local contra as famílias assentadas, e das consequências criminais da chacina a partir do acompanhamento de dois protagonistas: o advogado Vargas, defensor da ocupação, e o agricultor Fernando, sobrevivente do massacre que deixou o programa de proteção às testemunhas por motivos de saúde mental, retornando à fazenda em busca de voltar a viver uma possível normalidade.

Pau D’Arco foi realizado em paralelo a uma matéria jornalística, sob a produção da rede Globo. Sua natureza é democrática porque utiliza-se de uma linguagem muito próxima ao que seria o material para TV. A narrativa documental formar-se-á ao redor da rotina e vida dos dois protagonistas, ramificando-se em investigação através de entrevistas de figuras do mundo jurídico como promotores, policiais, advogados defensores dos policiais acusados, delegados, bem como os próprios sobreviventes cuja identificação é protegida. O protocolo jornalístico, porém, aqui, não é demérito algum, pelo contrário, mostra-se o formato mais eficiente: a diretora é uma mulher de coragem admirável, expondo-se tanto quanto seus próprios personagens, ao cutucar um vespeiro profundo e buscar, junto das famílias, alguma justiça que possa ser feita nessa guerra em que trabalhadores hipossuficientes lutam em face dos poderosos em total disparidade de armas.

É ainda mais fascinante que Ana Aranha faça uso da máquina da marca “Globo” de sua produção não só para denunciar a realidade arbitrária imposta sobre os assentamentos de agricultura familiar, mas também por trazer a urgência da reforma agrária em pauta, desmistificando movimentos populares tão estigmatizados pela política predatória da bancada ruralista e dos grandes monopólios da agricultura. É tremendo o benefício que Pau D’Arco faz aos movimentos ao dar nome aos trabalhadores rurais, mostrar seus rostos, seus trabalhos e suas rotinas, mostrar que constituem famílias tão comuns como as presentes em qualquer outro lar brasileiro, em importante quebra ao mito que se formou ao redor da temática. A entrevista da diretora com os advogados dos policiais representa bem o discurso mentiroso, capenga e violento que sustenta a lenda: a tese de que as próprias famílias se matam, de que são cangaceiros e que há uma guerra interna entre eles. Ou, ainda, no resgate da fala (horripilante) da campanha bolsonarista à presidência: “bandidos do MST, suas ações serão tipificadas como terrorismo”.

A luta coletiva, invariavelmente, entra em colisão com as lutas individuais dos protagonistas. Advogado e trabalhador rural são ameaçados de morte constantemente – o que não motiva qualquer freio. Há uma dilacerante tragédia delatada por Pau D’Arco que vai nos fazer amargar dolorosamente (uma dor, de fato, indescritível) o propósito de tudo, assim como vai fazer tudo que envolve o projeto fílmico ser questionado. Nós, do conforto de nossas poltronas, nos alienamos da palpável e verdadeira guerra que circunda, persegue e assassina, descarada e diariamente, pequenos agricultores e colaboradores da agricultura sustentável. Ana Aranha nos tira, pertinentemente, desse conforto. Como advogada e apoiadora da reforma agrária e da luta dos movimentos populares que dão vida à terra improdutiva, Pau D’Arco é, pessoalmente a essa que vos escreve, denúncia da realidade, e ao mesmo tempo, inspiração: não permitir que as coisas terminem, se deem por concluídas, é a maior estratégia disponível.

Nota:

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