Rua do Pescador, nº 6

Há algo de tanto corajoso como desafiador na decisão de documentar uma catástrofe em forma de filme, principalmente quando trata-se de um acontecimento que urge efeitos em esferas diversas, como é o caso das chuvas do Rio Grande do Sul, ocorridas em 2024, tão recentes e ainda muito presentes na recordação do brasileiro, muito embora, histórica e culturalmente, sejamos um povo de memória curta (vide o risco de anistia dos atos golpistas de 8 de janeiro de 2023). Transita, invariavelmente, o risco entre a insensibilidade e o sensacionalismo. Em Rua do Pescador, nº 6, a diretora Bárbara Paz parece muito consciente da delicadeza da temática de seu projeto, de seus possíveis contornos e das camadas que ele reverberou e ainda reverbera – ambientais, sociais, políticas, apenas para citar as mais óbvias. Quiçá por tal compreensão, escolhe esclarecer que seu filme é um documento-visual, uma obra-registro, que mostrar-se-á de um ponto de vista pouco interventor e muito observador, mas que recusa-se a se enquadrar numa caixa convencional, para tornar-se (por que não assim o denominar?) um documentário de horror.
Assim sendo, Bárbara Paz faz de sua obra um registro que caminha entre o aterrorizante, usando elementos do cinema de horror de forma a retratar um estado de mundo e de espírito que decorre da tragédia e o efeito de suas imagens impactantes, e o testemunhal, na medida em que se permite escutar aqueles que sofreram diretamente as mais árduas consequências das enchentes do RS em 2024. Estabelece, assim, o equilíbrio necessário entre a urgência da denúncia e o afeto àqueles que resistem.
Em sendo Rua do Pescador, nº 6, portanto, uma obra-registro de horror, os elementos do gênero constituem as limitadas intervenções que a diretora opta por realizar, e que são, primordialmente, artísticas. Fotografado em preto e branco, a obra usa das imagens de arquivo mais apavorantes da tragédia, trabalha-as sob uma trilha sonora inquieta e de tensão crescente e faz predominar sons naturais horripilantes para compor, assim, um cenário de terror bastante oportuno. Ondas gigantes que colidem nas encostas, o mar revolto sob a chuva forte, o alagamento geral – casas, carros, pessoas, animais – o registro dos acontecimentos apavora, fugindo de um possível efeito melodramático ou excessivamente escandaloso. O som do vento forte, das sirenes, das notícias de rádio e dos trovões, que predominam e substituem os diegéticos, elevam a inquietude e o incômodo.
O modo como a diretora conduz Rua do Pescador, nº 6 e, inclusive, a narrativa que caminha ao redor de uma catástrofe, remete, em muitos momentos, à animação vencedora do Oscar Flow, de Gints Zilbalodis. Quando não nos traz imagens de arquivos, a câmera de Paz passeia num fluxo quase imparável por entre as ruas pós-enchente e seus rastros de cenário de guerra, deixando a destruição conduzir a imagem de modo semelhante ao que Zilbalodis faz quando permite que a água seja o fio condutor narrativo e definidor das decisões dos personagens. A diretora trabalha esse efeito em alguns planos-sequência bastante específicos, ora o fazendo andando para trás, ora avançando, em simbologia ao destino para o qual tudo parece caminhar.
Rua do Pescador, nº 6 observa, transforma a observação em sensação, e também escuta, ao adentrar o aspecto social das consequências da calamidade. Concentrando-se, principalmente, nos moradores de Ilha Pintada, traz a perspectiva humana do ocorrido, permitindo a fala àqueles que mais diretamente amargaram e amargam os efeitos desse horror. Mortos, perda de familiares, pessoas idosas que assistem a construção de toda uma vida se esvair com uma facilidade assustadora, contas que continuam precisando ser pagas, a necessidade de reconstrução de bens e vidas – o drama do típico trabalhador brasileiro inserido na tragédia é bem resumido na imagem de uma carteira de trabalho ensopada, cuja foto descasca-se até o sumiço.
Se há, para além das pessoas, vítimas diretas, negligenciadas e mais penosamente atingidas (e ainda mais, porque inocentes e alheias de qualquer decisão ou ato que possa ter dado causa à tragédia anunciada), essas são os animais, ditos domésticos ou não. É na abordagem das vítimas não humanas, que ocuparam espaços nos noticiários de tantas casas brasileiras, que Rua do Pescador, nº 6 corria o risco maior de pender ao sensacionalismo. Seria um caminho fácil, diante da vastidão de arquivos disponíveis, escolher imagens pelo impacto a ser causado. Bárbara Paz, em que pese a inevitabilidade de tratar, por exemplo, a situação chocante do cavalo Caramelo, que se tornou símbolo de resistência nas enchentes, e muito embora permita que assistamos desesperados a um cachorro exausto que não consegue subir ao único abrigo disponível (um telhado), evita o excesso através das poucas interferências cinematográficas que faz nesses momentos.
A atenção à urgência da temática faz com que, em muitas oportunidades, fiquemos com a impressão de que há uma certa ansiedade na decisão de manejar e expor o maior número de imagens possíveis, de modo que algumas sequências comecem a se mostrar um tanto aleatórias e carentes de filtro e fio narrativo que as organize. No entanto, Bárbara Paz certamente cumpre com seu objetivo de tornar Rua do Pescador, nº 6 uma obra-registro de um acontecimento tão espantoso que dispensa narração, caminhando próxima de uma linha tênue do sensacionalismo sem para ela pender, criando sensações através do cinema de horror aplicado no documentário que são muito pertinentes, e autorizando que, ainda assim, encontremos resistência, acolhimento e superação.