9-Month Contract | 2025

9-Month Contract | 2025

Tamanho o paradoxo da mulher que carece vender o próprio corpo como meio de gozar e proporcionar à sua família uma vida minimamente digna, quando essa mesma necessidade é responsável por retirar-lhe, gradativamente, a dignidade como indivíduo, como ser humano de direitos. Não, não estamos falando, aqui, da prostituição. Na capital da Geórgia, Tbilisi, a prática da barriga de aluguel, muito embora legalmente autorizada e intermediada por agências, não é regulamentada, o que faz relegar a mulher que cede seu ventre às margens sociais da insegurança, da indefinição e da ausência de amparo à saúde pelo aparato estatal.

Tal a vida marginalizada de Zhana, protagonista de 9-Month Contract, documentário dirigido por Ketevan Vashagashvili e vencedor da mostra Human:Rights Award do Festival Internacional de Documentários de Copenhagen CPH:DOX 2025. Ex-pessoa em situação de rua, mãe solteira, e tramitando de um trabalho precarizado a outro, acompanhamos a jovem de 29 anos passar por sua terceira, quarta e quinta cirurgia cesária. Ela cede seu útero – nove meses de gravidez, nove meses de contrato – em troca de 14.000 dólares. A exposição às gravidezes e cirurgias em sequência deteriora sua saúde sobremaneira e coloca seu corpo no limite, mas outra saída não há para que ela alcance seu principal objetivo de vida: sustentar a filha adolescente, Elene, e dar-lhe uma vida mais digna que a sua, projetando nela o futuro que ela não pôde usufruir.

A diretora Ketevan Vashagashvili guarda com Zhana uma relação de intimidade extracampo. Há 12 anos, conheceu sua protagonista em situação de rua com a filha ainda pequena, e através da realização de um curta-metragem, conseguiu ajudá-la a encontrar um lar, aproximando-se e encontrando nela uma amizade de grande confiança. Da instabilidade de moradia, caminhou para a miserabilidade financeira, e a dificuldade de conseguir emprego a fez entrar no “mercado” exploratório das barrigas de aluguel. Nesse ramo, garantias há apenas para os contratantes, futuros pais da criança por nascer. À contratada, que coloca sua vida em risco, não há qualquer proteção.

Com uma introdução poética, rápida e eficaz na apresentação de suas personagens, 9-Month Contract traz uma perspectiva crua e concomitantemente sensível a respeito não só do abandono social de Zhana, mas também da tocante (e também conflituosa) relação que ela guarda com a filha. O contraste entre a crueza e a delicadeza é bem equilibrado pela diretora, como dois eixos complementares, o segundo como justificativa do sofrimento do primeiro. Mãe e filha são retratadas em momentos intimistas, aproveitando a praia sob um bonito pôr-do-sol, ou cuidando dos cabelos uma da outra, que enriquecem imageticamente a narrativa documental, quase como um respiro às modificações do corpo de Zhana que assistimos e sua submissão a tratamentos médicos desumanos no momento dos partos.

A rotina entre uma gravidez e outra é mostrada pela diretora através de pequenos saltos temporais perceptíveis através do crescimento de Elene e das mudanças do estado de saúde física de Zhana. O cuidado da casa, a alimentação, os estudos da adolescente, tudo compõe material de interesse à Vashagashvili. A dedicação exemplar da carismática menina aos estudos é o maior motivo de orgulho da mãe, mas, outrossim, uma das fontes de conflito entre elas. O trauma da protagonista, o medo da pobreza e o imensurável amor pela filha a fazem precipitar expectativas altíssimas sobre o futuro da filha, o que, invariavelmente, vem acompanhado de pressão: “Você precisa estudar para não ser faxineira como eu”, “Você será juíza”, “Você será promotora”, “Faço isso por você” – Elene é demandada a se encaixar nos sonhos da mãe quase que obrigatoriamente.

O principal, porém, certame entre as personagens advém, justamente, das consequências da invisibilidade da situação da mãe como locadora de útero. A compreensível superproteção materna faz Zhana ocultar da filha os problemas de saúde e também emocionais que começam a surgir. As complicações decorrentes de partos prematuros tornam necessário que a protagonista fique internada, fazendo com que Elene, uma adolescente com traços notórios de ansiedade, fique sozinha. É dilacerador o desespero de Zhana, em tantas camadas de sofrimento, debilitada, preocupadíssima com a filha, precisando voltar para casa de trem após parir mais uma vez através de uma cesariana.

A desumanização de Zhana, proporcionada pela falta de regulamentação dos contratos de barriga de aluguel, é uma reação de cadeia. Além da ausência de assistência adequada à saúde, há o abandono burocrático das agências que, supostamente, deveriam zelar pelas relações contratuais que são firmadas. Em uma de suas gravidezes, a personagem começa a ser ameaçada pelo casal que teria alugado sua barriga, caso que, inclusive, gera uma investigação policial – não bastasse toda luta que ela precisa enfrentar, há, ainda, a batalha contra a burocracia. Em situação de desamparo, não consegue aderir a programas de auxílio do governo. Enquanto isso, o preço do aluguel é majorado em razão do aumento do número de imigrantes ucranianos na Geórgia, o que faz com que ela precise buscar uma moradia mais acessível.

O processo gradativo de invisibilização de Zhana culmina no parto de sua quinta criança, após uma gravidez de risco, ocasião registrada sem rodeios por Ketevan Vashagashvili. Seu corpo soa como mero objeto, ou, nas palavras dela, um contêiner, uma vaca parteira. Durante a cirurgia, amarrada pelas mãos, ela ouve decisões sendo tomadas por ela sem que ela seja consultada, escuta o médico admirar-se por sua idade diante de um corpo já tão sofrido. Seu único alento, ali, é a presença da diretora. É expressivo o olhar de abandono e medo que ela lança para a câmera da amiga, enquanto assiste inúmeras pessoas lhe retirando o útero já desgastado. É quase uma ironia proposital que o médico, com a criança recém-nascida nos braços, leve-a até Zhana para dizer: “Parabéns – aos pais”.

O abandono dessas mulheres que dispõem seus úteros em prol da felicidade de outras pessoas choca tanto quanto Zhana contar à diretora que ofereceram dinheiro por seu rim. Em 9-Month Contract ela se torna, perante o Estado e a sociedade, apenas um corpo disponível. Como se conformada, ela própria, com seus status de pessoa desprovida de direitos, resta apegar-se em sonhos que sequer são seus. Não há, para ela, sonhos grandes, mágicos ou individuais, apenas doação completa através do desejo por educação, liberdade e vida digna para a filha.

Nota:

Author

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *