O Jardineiro, o Budista e o Espião | 2025

O Jardineiro, o Budista e o Espião | 2025

No livro Introdução ao Documentário, o autor Bill Nichols levanta a importância da ética nas relações entre o cineasta e os atores sociais (os “personagens” do documentário), bem como as consequências do retrato documental tanto para aqueles representados como para o público em geral. Um documentário não é, em hipótese alguma, um reflexo fiel da realidade, mas sim, uma perspectiva dela, um ponto de vista parcial, modulado de acordo com aquilo que seu condutor deseja transmitir através de suas escolhas estéticas e de linguagem cinematográfica. Entretanto, negligenciar eventual transparência na mediação entre as pessoas retratadas e os realizadores pode gerar efeitos eticamente questionáveis, ao ponto de provocar o acionamento do Poder Judiciário para solução de conflitos – uma visão específica sobre determinada realidade pode reverberar concretamente na vida das pessoas envolvidas, para o bem ou para o mal.

O Jardineiro, o Budista e o Espião, selecionado para a competição internacional de longas ou médias-metragens do Festival É Tudo Verdade, bem como integrante da mostra F:Act Award do CPH:DOX (Festival Internacional de Documentários de Copenhagen) é exatamente o tipo de documentário que nos faz questionar os limites éticos de seu condutor e o quão exploratório ele pode ser para alcançar seus objetivos. O diretor norueguês Håvard Bustnes, presente no CPH:DOX do ano passado com o complicadíssimo Phantoms of the Sierra Madre, faz de Robert Moore o jardineiro, budista e espião descrito no título. Moore foi protagonista de um escândalo envolvendo a investigação da indústria de amianto, segundo ele, trabalhando como agente duplo ao lado de ativistas e repassando informações do movimento aos maiores nomes da exploração desse mineral tóxico ao ser humano. O diretor acompanha essa figura juntamente a uma matéria jornalística sobre sua história, apegando-se na dubiedade de sua personalidade e nos questionamentos quanto à veracidade de suas falas.

Moore, o protagonista de O Jardineiro, o Budista e o Espião decidiu, durante a gravação do filme, não mais fazer parte dele. Em diversos momentos do documentário, manifesta-se contrário às decisões do cineasta. Muito é decidido, descaradamente (e não há qualquer omissão quanto a isso), às escondidas, sem que ele seja consultado. Sendo essa uma pessoa real, até que ponto é razoável conduzir e construir um olhar sobre ela (e com ela) sem sua plena anuência, em prol de contar uma história interessante?

É evidente que, do ponto de vista narrativo, o fato de Robert Moore alegar ter atuado como agente duplo, quando há inúmeros questionamentos e controvérsias sobre sua verdade, é instigante. A indústria do amianto lucrou e ainda lucra a partir de uma atividade que ainda mata cerca de 200 mil pessoas anualmente. Muito embora o mineral seja proibido em mais de 60 países, ainda circula em sua versão denominada “branca”, permitida e vendida como segura, ainda, em muitos locais do Brasil. Intriga ainda que Moore deixe claro que sua atuação como agente duplo fez desvendar quem são os maiores nomes que atuam ilegalmente no mercado mundial do amianto, e que, aparentemente, não há qualquer interesse em apontar responsáveis.

O que Håvard Bustnes pretende, porém, é provocar nossa curiosidade e nossa desconfiança com relação à palavra de seu principal ator social. “Julgue você mesmo”, é o que ele clama ao seu público, construindo um certo misticismo ao redor de Moore ao evocar o antagonismo do espião que agora é jardineiro e um budista fervoroso. O diretor parece querer revelar um esquema manipulatório realizado por seu personagem, manipulando-o na mesma medida, e usando de seus incômodos quanto a forma como o filme está sendo conduzido como mote narrativo, o que soa um tanto desonesto da parte do cineasta.

Diferentemente de O Jardineiro, o Budista e o Espião, a direção do podcast que vai sendo gravado durante a realização fílmica se ramifica justamente para atender certa ética e responsabilidade. Os dois jornalistas que, inicialmente, se propuseram a realizar a matéria jornalística, separam-se no projeto, em razão da solicitação de Moore por certo controle de perspectiva. Um dos profissionais passa a conduzir uma investigação sem a participação do protagonista, ao passo que o outro se dispõe a ouvir sua versão e reproduzi-la, sendo sua voz na gravação utilizada por Bustnes como narração de seu filme.

Håvard Bustnes parece, aqui, manter o mesmo critério utilizado em Phantoms of the Sierra Madre: o de atuar, sem direcionamento, como parasita, a partir de certo fato e determinadas pessoas, deixando os acontecimentos fluírem quase apostando para ver onde as coisas vão dar. Se lá, ele explorava o extermínio do povo indígena para privilegiar o prisma do homem branco sobre aquela causa, aqui, ele usa da personalidade dúbia de um homem e do sensacionalismo para criar uma atmosfera de intriga, desprovendo-se de qualquer cuidado ético perante uma figura real e abertamente discordante do retrato que o filme faz sobre ele.

Nota:

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