O silêncio, o dogma e a dúvida: leituras sobre Conclave

Por Paulo Ricardo da Silva Borges Batista
Naquela tarde, como em tantas outras, um dos cardeais mais influentes do Vaticano havia escolhido deliberadamente uma freira de outro país (Nigéria) para que participasse de uma eleição decisiva e servisse uma refeição, ainda que sem saber, ao candidato inicialmente favorito, Adeyemi, interpretado pelo ator Lucian Msamati — com quem, outrora, tivera um conturbado relacionamento. No entanto, e diante da confusão entre os amantes, aquele que provavelmente seria eleito acaba derrotado nas votações seguintes. Sua derrota decorre não da impossibilidade formal do voto, mas da disseminação de sua história amorosa — espalhada como sarna —, que leva os demais eleitores a recuar. Não se trata de uma questão de legalidade, mas de aparência: para a Igreja Católica, nada parece mais vital do que a preservação da imagem do sagrado e da moral. O conflito revelado no enredo de Conclave não representa apenas uma relação entre dois sujeitos que, em princípio, teriam renunciado à vida profana para viver o sagrado; trata-se também de uma fissura simbólica numa instituição marcada por feridas históricas ainda abertas: os escândalos sexuais.
É nesta trama de dúvidas, medos e intensa política institucional que o filme ensaia uma leitura alegórica da possível morte do Papa, representante máximo de Deus na Terra. Após seu falecimento, são convocados cardeais de todo o mundo para eleger o novo pontífice. Lawrence, personagem de um cardeal liberal interpretado por Ralph Fiennes, é o designado para coordenar esse processo grandioso e complexo, no qual terá de lidar com as vaidades dos homens de fé — ao mesmo tempo que a sua própria fé se esvai —, além de suportar os olhos atentos do mundo, que aguardam ansiosamente o novo líder espiritual. “A Igreja não pode ter dúvidas” é uma das frases centrais da obra e representa não apenas uma diretriz de ação, configurada na totalidade do pensamento religioso — que exige decisões majoritárias e céleres —, mas também uma insinuação sutil de que os fiéis, lá fora, não podem esperar muito para que alguém lhes aponte os caminhos do céu e do inferno. Afinal, um mundo sem dirigente espiritual não seria apenas pior: seria catastrófico. No caos das possibilidades e dos múltiplos mundos possíveis, os homens inevitavelmente se angustiariam diante da liberdade da escolha — como bem afirmou Sartre.
As votações, como podemos imaginar dos ritos ecumênicos, são profundamente demoradas, com todos os presentes do mundo bem paramentados. Sentam-se em grandes mesas, tendo à sua frente apenas uma caneta e um pequeno papel retangular, no qual estarão diante de uma decisão de projeto de poder político-espiritual que afeta não apenas o mundo, mas também suas próprias vidas e seus jogos de interesse. À exaustão, cada representante, entre as dezenas presentes, se levanta com seu voto já escrito, dirige-se a uma pequena cátedra responsável pela coleta e contagem, e deposita sua esperança numa espécie de urna. Antes disso, pronunciam em latim a frase sagrada: eligo in summum pontificem (“[eu] elejo como Sumo Pontífice”). Mostra-se, assim, a portas fechadas, que a verdadeira democracia — ainda que se diga o contrário — ocorre entre poucos. E que a Igreja, como todas as demais instituições de poder, sempre que possível, toma suas decisões sob sigilo, a portas cerradas.
Outro aspecto notável durante o pleito é o papel exercido pelas freiras, quase sempre à margem dos altares e pouco conhecido do espectador não-crente. Elas não cantam, tampouco tocam instrumentos ou se dedicam à leitura e à escrita, como talvez se imaginasse. Estão ali, sustentando com o corpo e a força física cada pedra das igrejas. Realizam, em síntese, todo o trabalho doméstico e de cuidado possível. Permanecem, enquanto os homens conduzem seus jogos de poder, enclausuradas nas cozinhas, preparando os almoços de negócios e os jantares de campanha. Estão aprisionadas, com o terço em punho, a abrir portas para seus colegas de clausura e a servi-los com vinho e refeições. Impossibilitadas de tornarem-se “máquinas de gente”, seu labor é o da servidão voluntária, legitimado pelo julgamento moral e religioso que a Igreja impõe à mulher. Afinal, como advertia o apóstolo Paulo em sua carta aos Coríntios, “as mulheres devem permanecer caladas”.
A irmã Agnes, interpretada por Isabella Rossellini, responde à altura a esse papel — não apenas o do personagem, mas também o das mulheres enquanto categoria de totalidade, como mencionado no parágrafo anterior — ao se impor, em uma das poucas vezes entre os homens, e declarar: “ainda que nós, irmãs, devêssemos ser invisíveis, Deus nos deu olhos e ouvidos”. Sua atuação não é menos importante, pois retrata com exatidão o lugar onde as irmãs parecem estar: o hiato, uma cavidade de penumbra na qual ela se esgueira com precisão, falando pouco durante a obra, mas dizendo muito através do olhar, da boca entreaberta e dos gestos sutis. Um desses gestos é o levantar da cadeira enquanto as respostas são apresentadas na tela, permitindo que Lawrence as observe sem que ela precise verbalizá-las, assim evitando ocupar uma posição de superioridade — o saber mais em relação a um homem. Agnes é aquela que, como o ar, paira pelos corredores na penumbra da noite, atravessa portas sem que se veja seu corpo, mas apenas o rastro rápido de seu hábito. Aquela que ouve silenciosamente atrás das paredes e portas, enquanto os homens falam despudoradamente em voz alta.
Em determinado momento do desenlace, o encarregado pelo conclave realiza um discurso fundamental em que alerta que as certezas são as culpadas pelas intolerâncias e que as dúvidas são as grandes correntes que movem a engrenagem religiosa, pois são elas as responsáveis por nos mover em relação ao mistério e à fé. A disputa religiosa e de projeto entre as alas conservadoras e liberais da Igreja chega ao fim quando, em um discurso quase extraordinário, um dos cardeais, Benitez (Carlos Diehz), vindo da guerra e dos lugares de genocídio deste mundo, se levanta radicalmente contra o discurso de cardeal Tedesco (Sergio Castellitto), o candidato mais reacionário, que afirma que a Igreja deve “lutar e exterminar” o islamismo e, consequentemente, toda outra religião que não a sua — toda diferença que não faça parte de sua própria ideia de igualdade.
Ao fim, Benitez, um desconhecido, pouco localizado político-ideologicamente, passa a ser um dos favoritos contra o reacionarismo. E chega ao posto de sumo pontífice não pela riqueza de sua trajetória ou pelos meandros da política, mas pela sua capacidade de mostrar àqueles homens que o que estava em questão não era apenas uma visão do papado, mas uma visão de mundo e, consequentemente, de valores, entre o que seria o progresso e o atraso imposto pelas agendas desses agentes políticos e ideológicos. A fumaça, advinda da queima das cédulas, por fim, sai pela chaminé da Capela Sistina e sinaliza ao mundo que finalmente há um novo papa. Assim, o caos lá fora se dissipa, enquanto um novo flanco se abre no seio da Igreja — mas, este deixo para que os leitores acompanhem com seus próprios olhos quando assistirem a película.
Referências Bibliográficas
CONCLAVE. Direção de Edward Berger. [S.l.]: House Productions, FilmNation Entertainment, 2024. Disponível em: https://www.primevideo.com/-/pt/detail/Conclave/0S1D0ZG9TT4UY68JR0QKI6BL6Z. Acesso em: 20 abr. 2025. Filme.
FOLHA DE S. PAULO. Como funciona o conclave. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/webstories/mundo/2025/02/como-funciona-o-conclave/. Acesso em: 20 abr. 2025.
MICHAELIS. Michaelis Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa. Disponível em: https://michaelis.uol.com.br/. Acesso em: 20 abr. 2025.