Criaturas da Mente | 2025

Criaturas da Mente | 2025

O sonho essencial

O cinema não tem fronteiras nem limites. É um fluxo constante de sonho.

Orson Welles

Se o cinema é sonho, o que faz um cineasta que não consegue mais sonhar? Esse é o dilema que instiga Marcelo Gomes a começar sua investigação em Criaturas da Mente. Adotando seu já característico estilo documental intimista, onde se coloca como o ponto propulsor da narrativa, o diretor pernambucano parte em uma jornada para entender os meandros do cérebro humano e as influências do inconsciente no processo criativo de um artista.

Quando começava a filmar Retrato de Um Certo Oriente (2024), Gomes teve que interromper os trabalhos por conta da pandemia. Todos tivemos que nos fechar em casa, privados de prazeres cotidianos e, inclusive, de acesso a experiências coletivas com a arte. Além de toda a angústia que passou nesse período, o cineasta relata o seu problema ao dormir. Um último e enigmático sonho, onde o mundo explode e ele se vê isolado, retira-lhe também o prazer do onírico. As noites mal dormidas geram aflição para o artista que não consegue mais acessar a janela para o “outro lado”.

Suas leituras sobre o tema levam-no ao neurocientista Sidarta Ribeiro, um dos grandes estudiosos da área no Brasil. É do encontro entre os dois que Criaturas da Mente segue sua busca por respostas, mas nunca na tentativa de finalizá-la com o argumento científico, pelo contrário, Gomes adota uma postura que é aberta à reflexão, e que se concilia com a visão de mundo do cientista. Há décadas Ribeiro se interessa pelas potências do sonho, bem como os efeitos dos psicotrópicos na mente, rompendo com um paradigma que tinha esse estudo como uma pseudociência. Juntos eles transitam pela ciência, pela religião e pelo psicodelismo.

Mesmo sendo um documentário investigativo, Criaturas da Mente não se entrega a formalismos baratos que geralmente recaem sobre esse tipo de filme. A frontalidade das entrevistas é o tempo todo desafiada pelas inquietações do diretor/narrador, ou até mesmo das pessoas com quem conversa, principalmente Sidarta Ribeiro. A montagem adota um tom surrealista, sobrepondo imagens e incluindo desenhos e cores psicodélicas, unida a sons estridentes e até assustadores. Essa condução estabelece um “espírito filosófico-enigmático” na obra, faz despertar aquele prazer pelo desconhecido de quem ama conhecer, sem hierarquizar, mas aberto às inúmeras ferramentas interpretativas que a vida nos dá.

É assim que cineasta e cientista percorrem a umbanda, a ancestralidade indígena (entrevistando Ailton Krenak, grande pensador contemporâneo), a energia do maracatu no carnaval pernambucano, e desafiam o preconceito aos psicoativos que poderiam estar salvando vidas agora. São sempre possibilidades que se abrem, linhas de fuga que escapam a centralização do conhecimento, traçadas com a sinceridade que Marcelo Gomes habitualmente imprime em seus filmes.

Criaturas da Mente é a resistência do sonho, leva-nos a um diálogo interno, onde somos habitados por tais criaturas psíquicas capazes de intervir em nossa prática cotidiana, não menos reais do que aqueles que cruzamos nas ruas, seres que muitos ainda insistem em aprisionar à loucura, relegar à marginalidade. E se o cinema é um fluxo de sonho, é, então, a arte uma conexão do artista consigo mesmo, um caminho de liberdade, assim como podem ser a ciência, a fé e a filosofia.

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