O Ano em que o Frevo Não Foi pra Rua | 2025

O Ano em que o Frevo Não Foi pra Rua | 2025

A capacidade de adaptabilidade humana nos parece estar intrinsecamente relacionada à memória de curto alcance, principal e naturalmente quando, com facilidade, adequa-se a uma situação melhor e mais satisfatória do que a pretérita. Ou ainda, nas ocasiões em que o passado é tão penoso que o corpo parece determinar o esquecimento como meio de sobrevivência futura. Em se tratando do sofrimento coletivo, esquecer é nosso maior equívoco. Esquecer as causas e consequências de uma guerra pode inflamar outras mais. Arquivar os horrores vividos na pandemia causada pela Covid-19 e desaprender a importância, por exemplo, do uso de máscaras e da proteção das vacinas, é retrocesso quando há, diante das mudanças climáticas, riscos de surgimento de novas crises sanitárias – exatamente a nossa situação. Transformamos a indiferença em um escudo protetivo falso, caminho fácil para o processo de desumanização e abandono da empatia.

Por tais razões, assistir a filmes situados em contextos pandêmicos, como O Ano em que o Frevo Não Foi para Rua, da Mostra Competitiva de Longas-Metragens do 28º CinePE, documentário dirigido por Mariana Soares e Bruno Mazzoco, parece rememorar tempos muito distantes. É justamente uma reaproximação pungente, porém fundamental, que ele se propõe a fazer, ao falar, especificamente, do carnaval que nunca existiu: 2021, o ano em que o frevo não foi para rua.

O Ano em que o Frevo Não Foi para Rua faz registros das ruas vazias de Olinda quando da suspensão do carnaval durante o auge da Covid-19, trazendo relatos de pessoas diretamente envolvidas, emocional e financeiramente dependentes do evento. Os diretores abraçam com força a pessoalidade e a individualização do sofrimento de cada um dos entrevistados, mais sob o ponto de vista afetivo e menos sob a perspectiva econômica, perpassando por histórias e indivíduos diversos, que compartilham das mesmas angústias e desesperanças.

Utilizando-se de um inevitável preto e branco, de aspecto envelhecido pelos tons prateados (as cores se farão presentes com o retorno do carnaval), O Ano em que o Frevo Não Foi para Rua possui importante papel como memória e registro cultural de uma região e de um povo. Mesmo àqueles que não são familiarizados com o frevo e sua festa, o longa convida à conhecê-los, e é bonito assistir a essencialidade da música e do evento na vida dos personagens, como uma riqueza guardada a sete chaves ou uma característica própria impressa na personalidade e na razão de existir. “Não é saudade, é necessidade que ele exista”, é como bem define uma delas o sentimento de ver-se, repentinamente, impedida de viver aquilo que lhe é essencial.

Muito embora faça-se a escolha pela abordagem afetiva, o formato circular que faz os depoimentos transitarem entre a exposição e a volta às ruas vazias antes do início de um novo relato, torna o discurso um tanto repetitivo, o que finda por prejudicar nossa conexão. Ao passo que a estrutura cíclica do filme permite a exposição de uma gama de entrevistados, distancia-nos de uma maior aproximação deles. Quando estamos nos conectando com o relato de um, outro já se inicia. Trata-se de um documentário muito dependente do viés dramático e controversamente carente de fluidez dramática suficiente para nos tocar para além do contexto em si.

A falta de fluidez dramática parece fazer de O Ano em que o Frevo Não Foi para Rua um agrupamento de blocos muito semelhantes, que findam por dar ao longa um aspecto engasgado, e quiçá assim o seja, também, em virtude da recorrência conclusiva de cada um dos relatos destacados. É certo que a aflição comum é inevitável e mostrá-la é o mote documental, já que somos colocados diante de sofrimentos individuais e coletivos. Todavia, encerrá-las em todos esses ditos blocos enfraquece uma vertente coletiva de sentimentos de suma importância.

Mariana Soares e Bruno Mazzoco fazem de O Ano em que o Frevo Não Foi para Rua o filme sobre o carnaval do fim do mundo. O carnaval que nunca existiu. O close nos pés e pernas dançantes nas ladeiras vazias e tristes de Olinda guardam, com melancolia, a esperança do retorno. Sabemos que ela se concretizou, não tão cedo quanto gostariam e previam os personagens, mas o carnaval, enfim, voltou à vida, reunindo multidões em uníssono, compartilhando agora não mais a dor da alma, mas a deliciosa dor da batata da perna causada pelas incontáveis horas de folia. 

Nota:

Author

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *