O Ciúme | 2013
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O Amor, poema de Vladimir Maiakovski
Quero viver até o fim que me cabe!
Para que o amor não seja mais escravo
de casamentos,
de concupiscência,
salários.
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Os gregos antigos já discutiam o que seria o amor. Platão, em um de seus mais célebres diálogos, narra um banquete em que Sócrates e seus colegas discutem o tema, mas sem chegar a um consenso. Aristófanes, um dos presentes na reunião, usa da mitologia do Andrógino para explicar a necessidade humana de criar um vínculo amoroso; o amor seria, então, a completude da existência em duas partes que se encaixam. Fedro diz que o amor desperta o melhor de nós e requer um ato natural de sacrifício. Já Erixímaco fala em uma harmonia universal que traria saúde ao corpo. Por fim, o próprio Sócrates reconhece no amor um desejo pelo ideal: amar seria o caminho para buscar o que ainda não temos. Se trouxermos o debate para os dias de hoje, certamente Philippe Garrel estaria sentado à mesa com suas inquietações sobre o relacionamento moderno. Afinal, tantos séculos depois a discussão se atualiza: agora temos (mais do que nunca) o amor como afeto monetário. É uma moeda de troca?
O Ciúme (2013) é o primeiro filme de uma trilogia temática do cineasta francês Philippe Garrel, seguido por À Sombra das Mulheres (2015) e Amante por Um Dia (2017). Estrelado por seu próprio filho, Louis Garrel (que também empresta seu nome ao personagem que interpreta), acompanhamos uma história aparentemente simples da vida de um ator e suas relações amorosas. Começamos pelo término de seu relacionamento com Clothilde, mãe de sua filha, que é substituída por Claudia, também atriz, mas desiludida com a profissão. Pouco mais de uma hora de projeção é suficiente para que o diretor aborde questões extremamente complexas sobre as relações humanas e o ciúme a partir desse triângulo. O tom minimalista já reconhecido no cinema de Garrel se faz presente. É um deleite ao espectador perceber que com poucos elementos, ou tão sutis que parecem poucos, questões primordiais da existência são tão bem elaboradas.
Amor e liberdade são elementos indissociáveis. Nossa relação com o outro é naturalmente ambígua: ao mesmo tempo que me limita como aquele que me julga e impõe sobre mim seus valores, também é o que me faz perceber a mim mesmo, como um espelho. Algumas relações se tornam repressões terríveis em nossa psique, outras são tão satisfatórias que culminam em um acordo. Damos alguns nomes para isso: um namoro ou um casamento, no caso do filme. Dentro dessa relação temos um microcosmos de tal dilema existencial: aceitação do outro com tudo que isso implica, ou uma projeção de expectativas minhas sobre ele.
Louis troca um relacionamento no qual visivelmente não se sentia livre, por um em que assume um papel de libertação. Charlotte, a filha do casal, é quase como uma voz da consciência para além do triângulo amoroso, que pergunta “quem deixou a paixão primeiro?”, ou “por que vocês tiveram um filho se não queriam ter?”. Aliás, a relação da filha com a nova namorada do pai começa como algo encantador, uma relação mais afetuosa do que tinha com a própria mãe. Seriam esses os sinais de que estaria aqui uma boa relação, com as expectativas todas se cumprindo? Não há mais o impedimento de ser quem se é para Louis.
Mas, aos poucos, surge a posse como dilema. Primeiro é Claudia, a nova namorada, que parece se questionar sobre o que Louis faz na sua ausência. Se ele é agora aquilo que a completa, por que não estão o tempo todo juntos? O fato de Louis contracenar com uma mulher já se torna um incômodo, mesmo Claudia também já tendo trabalhado como atriz. O espaço que os dois habitam diminui, se torna bolorento. O diretor trata isso de uma maneira muito sutil, quando comparamos alguns momentos de Louis na casa e outros de Claudia, ou como as paredes começam a ficar mais presentes e notamos, realmente, algumas marcas de bolor. Ela chora e diz o quanto é triste e feio viver ali; ele diz que é o amor dos dois que faz qualquer ambiente melhor.
Cada um desses questionamentos, quando surgem, os direciona a rotas de fuga. Claudia flerta com um rapaz no bar logo após sentir ciúme de Louis. Ele, por sua vez, se deixa tocar a mão de uma mulher no cinema. Talvez os dois se perguntem: “e se o outro estiver me traindo?”. Então, fazem o mesmo. Louis parece ter ainda uma certa fidelidade, mas flerta com a liberdade: beija sua colega de teatro, mas logo diz que não pode dar sequência a seu desejo. Mas será mesmo que Claudia foi infiel? Garrel não mostra em nenhum momento um ato de traição por parte dela . Se Louis não consuma o ato de infidelidade, as cenas com ela são cortadas antes de uma resolução.
Enquanto o outro está sob nosso domínio e expectativa, tudo bem. Mas Claudia parece tomar consciência da condição ambígua do amor. “Quero viver até o fim o que me cabe!”. Para viver ela precisa ser livre. Ela desafia o ciúme de Louis. É quando ganha uma casa de presente de um amigo e resolve fazer lá sua morada com ele. Mas Louis não aceita morar na casa de outro. Como é possível manter uma relação assim? Para ele parece inadmissível.
Ao ver a liberdade de Claudia e seu afastamento, Louis tenta o suicídio. Talvez o amor, nos termos que conhecemos hoje em nosso tempo no mundo ocidental, seja esse como um salário, que requer um constante acordo de repressão do desejo. Isso implica em uma recusa à liberdade. É como uma troca de dominações. Então, Philippe Garrel, na roda do banquete, colocaria tudo isso em debate. Existe um amor verdadeiro e livre? Ou, intrinsecamente, amar é limitar o outro? Eis o ciúme. Se amar é deixar livre, Garrel expõe personagens que ainda não compreendem essa dualidade.