À Sombra de Duas Mulheres | 2015

À Sombra de Duas Mulheres | 2015

“À sombra das mulheres”, de 2015, é o segundo filme da trilogia do amor do diretor francês Philippe Garrel, sendo estrelado por Stanislas Merhar e Clotilde Courau em atuações extremamente competentes. A obra cinematográfica, fotografada em preto e branco, assim como os demais filmes da trilogia, mostra como uma direção que se quer objetiva consegue tratar adequadamente de assuntos complexos utilizando uma curta duração. Em “À sombra das mulheres”, Garrel utiliza 73 minutos e uma narração que conhece (e comenta) os pensamentos dos seus personagens principais para contar uma história singela, mas nada simplória. 

O diretor francês sabe como poucos se valer de temas comuns e realçar todas as nuances interessantes que os permeiam, fazendo qualquer história digna de ser apresentada ao público. Philippe Garrel apresenta histórias de amor, mas não aquelas idealizadas ou extraordinárias  costumeiramente representadas  nos cinemas, mas sim, narrativas ordinárias e que por serem assim, muito podem se aproximar da vida de cada espectador, gerando uma experiência única de conexão afetiva.

 Ainda assim, este é, inegavelmente, um perigo que o diretor corre. Certamente, não são poucos os que acusam este seu filme de contar com um roteiro pouco atrativo, enfadonho. Afinal, muitos não veem beleza na contemplação e na reprodução de uma história banal e profunda, como são as de amor, como é a de Pierre e Manon. E aqui, cumpre destacar a competência anormal de Garrel ao tratar das relações humanas em sua crueza e com uma objetividade que não é cínica, fazendo com que seus filmes possam ser difíceis de assistir, por conta de eventuais acessos a memórias e sensações, algo como outros diretores que também “simplesmente” retratam a Vida, como Richard Linklater e Wong Kar-Wai, são capazes de fazer.

O diretor apresenta Pierre e Manon como um casal que passa por dificuldades financeiras, com ela inclusive sendo ameaçada pelo seu senhorio por conta da falta de pagamento dos aluguéis. Já nesta cena, o proprietário do apartamento faz uma série de juízos de valor em relação ao lar de Manon (ora chamando o ambiente de trailer e ora de acampamento) e arroga-se no direito de invadir o apartamento de sua inquilina. Após o já inicialmente exposto, percebe-se que o casal passa a morar juntos.

Pierre é documentarista e Manon, durante meio período, é sua auxiliar. Ambos estão comprometidos com a filmagem de um documentário e para isso, realizam entrevistas. Garrel é brilhante ao colocar a mãe de Manon como alguém que não atribui qualquer valor aos documentários e documentaristas. Expondo a assertividade de seu cinema, Garrel traz em poucos segundos diversas temáticas. A sogra de Pierre demonstra a preocupação que tem em relação ao rumo da vida de sua filha por se relacionar com um documentarista, afirma que nenhum homem vale tantos sacrifícios e indica a desconfiança que tem em relação à competência de seu genro, afinal, “o que ele faz, qualquer um pode fazer / entrevistar pessoas, filmar suas respostas”. 

Em uma cena em que várias camadas se escondem por debaixo de sua “simplicidade”, o diretor francês aborda a desvalorização do documentarista e do documentário ( fica a reflexão: quantos documentários você assistiu no cinema? Quantos deles foram sucessos de bilheteria?). Eduardo Coutinho, o maior que tivemos, em entrevista dada ao Canal Brasil (que você pode assistir aqui) afirma que “(ser documentarista) não chega a ser uma profissão / dizer que o documentarista é uma profissão é um sacrilégio”, uma vez que “o cara não ganha a vida fazendo documentários”, que só são feitos quando há algum incentivo para isso. Coutinho, nesta mesma entrevista, afirma que esta realidade não é apenas brasileira, ela ocorre na França também. Pierre e Manon parecem saber muito bem disso. 

Ao mesmo tempo que Philippe Garrel, nesta curta cena, trata desta questão afeta ao Cinema e sua (des)valorização, ele também traz uma das preocupações mais essenciais de qualquer mãe/pai: o futuro de seus filhos(as) ante todas as incertezas da vida. Se terão boa remuneração, se relacionam-se com alguém interessante e se estão abrindo mão de seus próprios sonhos em prol dos sonhos de outrem, afinal, “nenhum homem vale o sacrifício de nossa vida”. Manon responde: “o que é melhor do que trabalhar com o homem que eu amo?”.

Em três cenas ágeis e curtas, Pierre conhece Elisabeth; Garrel nos apresenta o documentarista desmotivado a sair de casa com Manon; Pierre animado, esboçando um sorriso (sua sisudez é quase perene) ao chegar no apartamento de sua amante. A partir deste momento, Pierre estabelece uma relação amorosa com Elisabeth, o que dura vários meses. Enquanto isso, mantêm seu relacionamento com Manon trazendo indicações “clássicas” do homem que trai: chega tarde em casa enquanto a companheira já dorme e lhe presenteia com flores “sem ter motivos”, tendo Manon, com bom humor, afirmado que “flores são um presente clássico para mulheres traídas”, mas que naquele momento confiava no marido. 

A partir desta cena, Garrel se dedica a explicar a confortável posição de Pierre ao se relacionar com duas mulheres ao mesmo tempo, a partir das desculpas que os homens encontram em uma dupla moral; afinal, é assim que as coisas devem ocorrer e Pierre não escolheu ser homem. Há, nas entrelinhas, uma exposição bem acurada do insuflado ego masculino e como se acredita que uma questão essencialmente natural/animal permeia o tema da infidelidade conjugal. 

Sem anúncios prévios, sem adiposidades e mais nada que transborde o iminentemente necessário, chega o momento em que Elisabeth descobre que Manon trai Pierre com outro homem. É muito interessante notar que quando Elisabeth pergunta para Pierre o que faria caso Manon estivesse o traindo, sua reação é indagar sua amante se aquela pergunta está sendo feita apenas para saber se ele seria capaz de largar sua companheira para ficar, em definitivo, com Elisabeth, sua amante. Ou seja, mesmo que há meses estivesse traindo Manon, não passava pela sua cabeça a possibilidade dela estar fazendo o mesmo. 

Como dito, o diretor parece ter especial interesse neste ideário que remete a “natureza” do ato de trair, expondo na narrativa comportamentos que seriam masculinos e femininos: enquanto Pierre afirma sentir-se como um adolescente em sua primeira noite com Elisabeth, Manon exprime seu desconforto ao levar seu amante para o apartamento que divide com seu companheiro, pelo que ouve de seu amante que para ele  a situação não era estranha por “já estar acostumado com isso”.  

Toda a questão egóica masculina é retratada em nuances, o que ganha um tônus especial em duas cenas capitais: Pierre é avisado que está sendo traído e recusa-se a acreditar. Na cena seguinte, Garrel de forma brilhante, omite do espectador a cena que Pierre diz a Manon que sabe de suas traições, exprimindo assim, sutilmente, a fraqueza masculina em lidar com o que atinge seu ego, no que o diretor francês contrapõe, em momento posterior, na cena em que Manon, demonstrando muita segurança e moderação, afirma saber que estava sendo traída por Pierre, posto que ele havia mudado completamente seu comportamento diante dela.  

A dupla moral masculina salta à tela quando Pierre, mesmo possuindo um relacionamento extraconjugal e vendo sua companheira sofrer por toda a situação, coloca-se em uma posição de superioridade moral, demonstrada por falas que reforçam, a todo instante, o sentimento de culpa em Manon que, logo após a descoberta de sua infidelidade, “aceita ser torturada” daquela forma. Pierre é incapaz de assumir sua traição, mesmo diante das confissões de Manon, pois encara seu relacionamento amoroso com Elisabeth como algo ínsito à sua condição masculina, posto que só os homens podem ser infiéis. 

O narrador (cuja voz é masculina), captando a aura da narrativa naquele momento,  reforçada pelo preto e branco, afirma que “o casal não poderia voltar a ter paz e tranquilidade / Havia algo entre eles que não poderia ser dito / era uma sensação tão banal que não podia ser nomeada”. Nesta narração, o diretor deixa explícita a forma como busca captar e expor toda a complexidade daquele relacionamento: a partir do que todos percebem e não conseguem dizer; o que se sente, Philippe Garrel traduz em imagem em movimento. 

Não há como sobreviver àquilo. O relacionamento de Pierre e Manon chega ao fim. 

O filme conta com um desfecho contestável, que o faz perder muito de sua força apesar de se utilizar, de forma habilidosa, do humor:  o entrevistado do documentário produzido pelo casal era, em verdade, um farsante. Assim, conseguiu “trair” ambos. Garrel, em uma escolha passível de críticas, recorre à “passagem de tempo” para, um ano depois, colocar Manon e Pierre juntos de novo, trazendo ao espectador uma conversa cujo condão redentor expiou os pecados do passado, possibilitando que ambos pudessem, dali, viver a vida que projetavam.

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  • O representante do Pará no Coletivo Crítico que, entre o doutorado em Direito e os jogos do Paysandu, não dispensa uma pipoca para comer, uma Coca Cola gelada para beber e um bom filme para ver.

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