Os Catadores e Eu | 2000

Os Catadores e Eu | 2000

Agnés Varda, uma nata catadora de arte

“Catar era o espírito de antigamente. Cate tudo para não haver desperdícios”. 

A cata é o ato de recolher os restos, de dar rumo às coisas descartadas, que ficaram para trás. É nobre atitude que perdeu seu status com o avanço desenfreado da era industrial e do capitalismo. Foi relegada aos que pouco ou nada possuem, às pessoas que a sociedade dispensa o mesmo tratamento dado às coisas desprezadas. Esse o tesouro interessante e precioso à Agnés Varda, que, inclusive, intitula-se catadora de informações. A diretora, de fato, não só faz jus à sua autodescrição. Varda é catadora dos cacos deixados por pessoas que de marginalizadas se fragmentam, e cujas vidas ela restaura e reconhece o sentido, resgatando a nobreza da cata num documentário que transborda humanidade, modéstia e  amor por tudo que consegue transformar com sua arte.

Os Catadores e Eu”, originalmente intitulado “Os Catadores e a Catadora”, é um documentário de 1999 que traz Varda e sua câmera digital de mão em uma viagem pela França e sua história no que diz respeito à cata de alimentos e coisas, ao mesmo tempo em que faz uma autorreflexão sobre sua velhice e a passagem do tempo. A diretora, num fio muito fluído conduzido com sensibilidade e humor sutil, nos faz percorrer a transformação da importância dada ao ato de catar alimentos e coisas. Cruzando museus, conhecendo pessoas e instigando a contação de histórias, tudo lhe é interessante e digno de registro. Numa forma não convencional e exclusiva de seu notório amor pelo ser humano, ela se mantém presente, próxima de seus entrevistados e os deixa muito à vontade para que contem suas histórias. O fluxo do filme surge conforme brotam as tramas verdadeiras que naturalmente ela vai conectar.

“Catar era um costume de outrora, mas ainda se recolhem restos na nossa sociedade saciada”. 

O ato de catar alimentos foi motivador de muitas pinturas de tempos passados, refletindo um costume francês muito forte sobretudo entre as mulheres. Catar era um ato coletivo destinado apenas a elas, e foi muito retratado pelo pintor realista Jules Breton. Das artes pintadas, Varda transita para a vida real de uma senhora que cresceu realizando a cata após a colheita das plantações de trigo. A intenção de mostrar a origem da cata como um ato de união feminina é clara: “Voltávamos exaustas, mas nos divertindo e tomando café juntas”, é a fala da entrevistada, que demonstra o gesto daqueles tempos. Como mostra a diretora, catar era, ainda, um ato necessário nos tempos de guerra. Quando não havia o que comer, os restos se faziam necessários. Era um costume ensinado de geração para geração.

O modo orgânico com que Varda conduz o filme faz com que esse não seja apenas sobre conscientização quanto ao desperdício. Um documentário convencional transitaria acima das pessoas entrevistadas de forma mecânica. À Varda, o caminho se dá ao lado das pessoas e antes de nelas se aprofundar, o próprio gesto de catar é objeto de estudo da diretora. 

“Urbanos e rurais se curvam para recolher. Não há vergonha, apenas desordem”. 

A cata é, como nos faz refletir Varda, um ato de humildade e modéstia. O ser humano se curva para recolher restos de outro ser humano.

Antes um ato coletivo de união entre mulheres, hoje, para espanto da diretora, cada um cata sozinho. Até aqui percebemos o reflexo do individualismo e egoísmo capitalista. A catação de histórias realizada por Varda traz muitas denúncias. A primeira e quiçá mais famosa delas é o desperdício das plantações de um alimento base: a batata.

O mercado impôs um padrão de tamanho e formato à batata para que ela seja considerada consumível. Batatas que não o obedeçam não são vendidas. Nem tubérculos escapam do padrão de beleza! Portanto, como nada na natureza é totalmente domável, as batatas revoltadas que não seguem os padrões são descartadas: grandes ou pequenas demais, deformadas, gêmeas, todas essas são desprezadas e devolvidas para o campo para que sua decomposição transforme-se em adubo. O filme denuncia que apenas naquela região específica do interior francês cerca de 25 toneladas de batatas são descartadas. Tal fato não é disseminado abertamente, e a maioria se perde. Indignada com tamanho desperdício num mundo de fome, a diretora encontra e aborda as poucas pessoas que se aproveitam desse descarte desenfreado e despropositado: crianças, idosos, famílias que se alimentam do que não serve ao mercado.

Varda, sempre ao lado das pessoas entrevistadas, resolve se juntar à empreitada de catar batatas quando nota que muitas delas possuem formato de coração. Icônica e com um jeito só seu de transformar tudo em arte, ela, muito contente com sua descoberta, empreende a difícil tarefa de apanhar batatas em formato de coração com uma mão e filmar seu próprio gesto com a outra. Leva as batatas para sua casa, as olha, as filma, e maravilha-se com isso. Batatas se tornam emocionantes nas mãos de Agnés Varda.

Nos redutos de descarte de plantações, Varda conhece um homem que lhe desperta o interesse. Vale dizer que os personagens quase sempre são encontrados por acaso. Jovem, porém com poucos dentes na boca, ele integra caravanas de desabrigados e desempregados que são taxados de vagabundos, e que se alimentam apenas de restos e descartes em plantações e lixeiras. “Fazemos o melhor que podemos” e “Não temos medo de sujar as mãos. Podem ser lavadas” são palavras que esbofeteiam a face dessa sociedade saciada que a diretora delata. Com sutileza, a denúncia da diretora sai do ambiente rural e migra para o urbano, onde a base da alimentação dos marginalizados é o lixo.

Muito embora  Varda claramente adote um lado nos estrondosos problemas mundiais que são a fome, o lixo, o consumo desenfreado e o desperdício, se colocando abertamente ao lado daqueles que são tão desprezados quanto os lixos que recolhem, a diretora não deixa de mostrar todos os lados que circundam esse dilema insolucionável. Entrevista donos de plantações, protetores do capital, pessoas que não permitem a cata em suas propriedades mesmo cientes da fome de seus próximos, sem mudar seu tratamento, sem deixar de mostrar a humanidade existente também do outro lado da questão, ainda que essa humanidade seja permeada de avareza e pela sede de poder, como a própria diretora descreve num único juízo de valor que se permite dizer.

O estigma que se tornou a cata teve reflexos na normatização de algumas cidades francesas. A diretora vai até Borgonha, uma região de vinhedos onde a cata é proibida por lei. Lá, encontra um psicanalista que, despretensiosamente, ao explicar sua linha de análise, acaba por dizer muito da própria Agnés Varda: a filosofia antiego, que prega que a prioridade e a origem do ser humano é o outro. Não há dúvidas que essa filosofia se aplica ao cinema de Varda.

Desafiando a sociedade proibitiva de Borgonha, a cineasta catadora posiciona um advogado rural, vestido em sua toga, em meio a uma plantação de repolhos para falar sobre o direito à cata. A legislação francesa garante o direito dos catadores desde 1554, e é precisa: o direito de catar existe desde o nascer até o pôr do sol, e pode ser exercido pelos pobres e menos favorecidos sempre após a colheita normal dos alimentos. A cata sempre será realizada em propriedade privada, portanto, essa não pode ser invocada de forma a inibir esse direito. Após tornar conhecido o direito dos catadores, a diretora resolve andar pela plantação e filmar os vegetais que a agradam, reluzindo ao espectador toda beleza que pode existir no alimento que vem da terra, fazendo questão, ainda, de filmar um girassol que remete com sutileza à sua obra Le Bonheaur (As Duas Faces da Felicidade).

Os Catadores e Eu é um estudo sobre o outro e um autorretrato. Ela traz a cata como uma atividade mental que precisa ser por ela constantemente exercida para compensar sua memória fraca. Mostra, levando o espectador à sua casa, as coisas que coleta nas viagens que faz. As coisas são sua memória, e as mostrando, distrai sua câmera nas infiltrações do teto de sua morada, filmando-as e comparando-as com pinturas abstratas. Não se importa em consertá-las e não hesita ao mostrar os baldes que precisa colocar sob elas.

“Este é meu projeto: filmar minha mão com a outra mão. E entrar nesse horror. Acho extraordinário. Sinto ser um animal, pior, sou um animal que não conheço” é a narração da diretora enquanto aprofunda o zoom de sua câmera digital nas rugas de sua mão. O projeto de Agnés Varda também é esse autorretrato de seu definhamento como ser humano. Sozinha, sempre nesse desafiador exercício de filmar com uma mão só, ela mostra os cabelos brancos e as rugas sem medo. Respeita a chegada da velhice e torna uma arte, ainda que seja uma arte a ser temida.

Com um raccord salta da imensidão das rugas de suas mãos para mãos retratadas em uma pintura, passando a tratar do desperdício de coisas e objetos, entrevistando um jovem artista cujo objetivo é saber viver com pouco, ao mesmo tempo em que acumula pilhas de itens encontrados nas ruas. Mostra para Varda um mapa que, se para as pessoas indica onde depositar coisas imprestáveis, para ele mostra onde é possível catar. É um artista de restos, faz arte com aquilo que a sociedade descarta. Tal como a diretora.

 A mensagem anticapitalista e ecológica do documento fílmico é óbvia, mas mostrar ao espectador pessoas que concretamente vivenciam a consequência mais desastrosa desse sistema enriquece o tema. A cata não é realizada apenas pelos menos favorecidos, mas também por aqueles que querem afrontar e negar o sistema da forma que lhes for possível. Nesse contexto, nos faz conhecer um jovem que mesmo com emprego e salário, diz alimentar-se integralmente do lixo há mais de 10 anos, sem jamais ter ficado doente. Ele o faz em combate à sociedade ultraconsumista, em alerta às catástrofes naturais causadas pela mudança climática, o faz pelos animais, e principalmente, em prol das aves. Essa é sua causa.

Nos apresenta também a história de Alain. Ela o encontra por acaso nos “fins de feira” que ela passa a frequentar, a nossa famosa xepa, e se interessa porque sempre que o vê ele está catando e comendo. Sempre catando e sempre comendo. Logo nos faz descobrir ser ele um biólogo com mestrado que vende revistas na rua, e que por ganhar muito pouco alimenta-se da xepa e do lixo. A base de sua alimentação, que é vegetariana, é a maçã e o pão. Descobrimos ainda que à noite este mesmo homem voluntariamente dá aulas de francês à imigrantes no abrigo em que reside. Mesmo impressionada com a história que lhe é contada, enquanto conversa com Alain a diretora e sua câmera se distraem propositalmente com as pessoas que passam ao fundo: um garoto de skate, trabalhadores carregando barras enormes de ferro. Ela os filma sem tirar Alain de cena. Ela enxerga o que ninguém mais vê.

No ambiente urbano, a diretora também consulta uma advogada para assegurar aos catadores seu direito. As res derelictae, os objetos sem dono, trazem a declaração expressa do abandono. Quem realiza sua cata se torna dono absoluto daquele bem. Varda também acompanha a cata de objetos, levando para sua casa duas cadeiras e um relógio sem ponteiros, que virá a se tornar um dos ícones do filme: ela o coloca entre dois adornos em forma de gatos, animais também presentes no longa e um de seus símbolos mais marcantes.

Mesmo nas estradas que Varda e sua equipe percorrem para coletar histórias e seres humanos, há espaço para expressão artística. Entre percorrer cidades, vinhedos, lojas de achados, ilhas de ostras e plantações de batatas e repolhos, encontra espaço para destacar os incontáveis caminhões que passam por essa artista do cinema antiego. Enquanto insiste em filmar uma mão com a outra, ela narra: “Gostaria de capturar os caminhões. Para reter as coisas que passam? Não. Por brincadeira”. E de fato, captura inúmeros caminhões com suas mãos que brincam de abrir e fechar círculos ao redor deles.

Catadora nata da arte é o que ela se mostra ser. Numa foto antiga, ela vai se interessar por um garotinho desconhecido que nela apareceu por acaso. Além de brincar de capturar caminhões, Varda torna a vindima de vinhas esquecidas uma dança de tesouras, e uma distração sua uma coreografia. A cineasta esquece de desligar a câmera em determinado momento e acaba por registrar a tampa da lente balançando por um considerável tempo. Desse deslize, que seria facilmente descartado, ela faz uma dança e insere no filme, a dança da lente sob o ritmo de um jazz frenético, que ocupa alguns minutos do longa até que a tampa pare com suas loucuras.

Agnés Varda consegue imprimir emoção às histórias pessoais de seus entrevistados pelo simples fato de se importar com elas. Verdadeiramente se interessa por histórias de pessoas desprezadas pela sociedade que jamais seriam contadas. Consegue nos apresentar um cinema antiego sem deixar de realizar uma autorreflexão. Traz em Os Catadores e Eu elementos que nos aproximam de sua personalidade e de seu olhar artístico tão despretensiosamente minucioso, ainda que essa não seja sua intenção. Ela conduz o longa de forma a encaixar os acontecimentos de forma muito natural como se tivessem sido feitos para o filme por acaso, e de fato, alguns realmente o são.

O brilho de Agnés Varda  é tão intenso que a arte simplesmente acontece em suas mãos. E sua capacidade é tamanha que as filmagens tiveram o efeito de tirar a pintura “As catadoras fugindo da tormenta” do arquivo de um museu para integrar sua exposição. E ela acompanha justamente a obra até então esquecida sendo levada à céu aberto em meio a uma forte ventania, um quadro imenso sendo carregado por duas mulheres com muito esforço, enquanto narra o prazer que sentiu vendo a pintura sendo levada pelo vento e resistindo à tempestade. Porque a arte há de resistir a todas as tormentas.

Author

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *