Incêndios e a destruição da guerra

Incêndios e a destruição da guerra

Incêndios (2010), dirigido e roteirizado por Denis Villeneuve, é uma obra prima que conta com um desfecho revelador. Embora a trama não seja totalmente dependente desse final, a revelação é parte importante do sentimento que o diretor busca produzir no espectador. Como não pretendo comprometer a experiência do leitor, recomendo fortemente que só prossiga com a leitura deste texto caso já tenha assistido ao filme até o final.

A temática da guerra é objeto recorrente do cinema. Não são poucas as obras que abusam dos seus horrores para gerar comoção. Recentemente, escrevi aqui sobre Belfast, filme que explora os conflitos entre cristãos e protestantes na Irlanda do Norte. Em Incêndios somos levados a um outro cenário de conflito atravessado pela religião: a guerra civil do Líbano (1975-1990).

Como é regra em filmes desse tipo, não faltam representações da violência, da miséria e da destruição causada pela guerra. O uso de uma paleta com o predomínio de cores pastel reforça a aridez do clima, e o caráter acidentado do relevo reforça uma imagem ainda mais impactante da situação de miserabilidade ali vivenciada. Mas Villeneuve vai além da mera espetacularização da guerra e do sofrimento. O diretor é capaz de nos fazer compreender de forma mais detalhada o impacto dos conflitos na estrutura familiar.

Abrindo o longa com a leitura do testamento de Nawal Marwan (Lubna Azabal) sendo lido por seu ex-chefe, Lebel (Rémy Girard), aos filhos gêmeos Jeanne Marwan (Mélissa Désourmeaux-Poulin) e Simon Marwan (Maxim Gaudette), somos logo introduzidos a uma história típica dos filmes de investigação. Os gêmeos, até então convictos de que eram eles os únicos filhos da mãe e igualmente convictos de que seu pai havia morrido, são informados por meio do testamento de que possuem um outro irmão e também que o pai está vivo.

Por meio dessa trama somos levados desde os primeiros minutos a nos envolver e tentar, junto a Jeanne, compreender melhor a história da mãe. Produz ainda mais curiosidade a rejeição inicial expressa por Simon,  que se nega a seguir as indicações deixadas no testamento, sugerindo forte ressentimento na relação entre mãe e filho.

Sobrepondo cenas que mostram, em feedback, a própria Nawal, com outras de Jeanne visitando espaços onde sua mãe viveu, conhecemos melhor a realidade inóspita do Líbano da década de 1970 e a banalidade da violência naquele contexto histórico. Embora atravessado por uma guerra, Villeneuve não se preocupa em detalhar ao espectador do que se trata o conflito e o local exato em que se passa a história. Sabemos apenas que se trata de um conflito envolvendo cristãos e muçulmanos. Rapidamente, aliás, criamos repulsa a ambos os lados – o que é um mérito posto que fato raro nas produções ocidentais. Além de não adotar um lado de forma clara acerca do conflito, o longa também é capaz de demonstrar, mesmo que em alguns poucos momentos, a beleza da religiosidade praticada pelos indivíduos nos espaços privados. Há aqui um claro contraponto ao uso instrumental da religião por parte de grupos armados que almejam apenas obter poder com o controle de determinados territórios.

Em Incêndios somos apresentados à desumanização em seu extremo, produto inevitável da guerra. O assassinato se torna prática tão comum que mesmo o homicídio cometido por Nawal é percebido com naturalidade pelo espectador. Porém, ao mesmo tempo em que nos dá uma dimensão mais quantitativa da destruição da guerra, o longa também é capaz de apresentar, em detalhe, o impacto profundo que é produzido em uma família. Ao final, ainda que abusando da curiosidade provocada pelo caráter investigativo da trama, Incêndios é uma obra que utiliza de toda a sua sensibilidade para se colocar contra a guerra, escapando de produzir caricaturas de quaisquer dos lados envolvidos no conflito.

A narrativa faz relembrar a frase bastante famosa atribuída a Heródoto segundo a qual a diferença das épocas de paz para as épocas de guerra seria que nesta última são os pais que enterram seus filhos, e não o contrário. A trama também remete ao conhecido mito de Édipo, o herói que assassinou o pai e casou-se com sua própria mãe. Ao tratar dos temas da guerra e do incesto, Incêndios vai além e consegue imprimir tons ainda mais dramáticos. Em seu desfecho, nos provoca a refletir sobre como as guerras podem produzir não só o incesto e a morte de jovens e crianças, mas podem também, no limite, fazer com que um filho possa ser o torturador e estuprador da sua própria mãe.

Nota

Author

  • Rodrigo Badaró

    Natural de Belo Horizonte, é Cientista Político (UFMG), cruzeirense, músico e aspirante a crítico de cinema. A maior especialidade está em enxergar a política em todos os lugares, especialmente naqueles que mais ama: o futebol, a música e o cinema.

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