Holy Spider | 2022

Holy Spider | 2022

Vulnerabilidade. Essa é a sensação e o estado que ficamos (especialmente nós, mulheres)  após o término de Holy Spider, novo thriller do diretor iraniano Ali Abbasi, que concorreu à Palma de Ouro no Festival de Cannes 2022 e foi pré-selecionado para concorrer à categoria de Melhor Filme Internacional do Oscar 2023, como representante da Dinamarca. A misoginia transformada em crime pelo serial killer Saeed Hanaei, figura real que entre os anos de 2000 e 2001 assassinou 16 mulheres, todas prostitutas, acreditando estar agindo em nome de Deus e purificando a cidade sagrada de Meshed, no Irã, e que por seus crimes foi visto por muitos como herói é, por si só, uma história indigesta. Contá-la e visualizá-la através das telas requer estômago.

Para fazê-lo, Ali Abbasi a narra, inicialmente, sob o ponto de vista da repórter Rahimi (Zar Amir Ebrahimi, vencedora do prêmio de melhor atriz no Festival de Cannes 2022 pelo longa), também inspirada numa figura real, que indignada com a persistência dos crimes sem que a polícia tenha feito qualquer progressão na tentativa de descobrir o assassino, começa a investigá-los. Sob a perspectiva da investigação, o diretor revela camadas nefastas e atemorizantes da sociedade iraniana e dos caminhos que o moralismo religioso pode conduzir, mas ao decidir voltar seu olhar ao prisma do criminoso, mostra uma obsessão que torna Holy Spider uma obra um tanto perigosa.

Desde o começo, já identificamos o homicida, e acompanhamos sua rotina. Essa escolha pouco convencional para filmes do gênero esclarece que o objetivo do diretor não é o mesmo da repórter Rahimi. O suspense e o horror causados pelo filme residem na crueza com que Abbasi opta por expor essas mortes, e a revelação que ele pretende não é a de nos fazer descobrir o assassino, mas sim, de desvendar uma parcela doente da sociedade iraniana que tratou um serial killer como herói.

É possível dizer que Holy Spider nos guia por três visões. A primeira é a visão do que é ser mulher no Irã, que as aprisiona através de véus e camadas de roupas. De forma ainda mais específica, somos conduzidos a visualizar o que é compor uma parcela da sociedade feminina que afronta a moral e os bons costumes daquele lugar: as mulheres que trabalham e se recusam a se submeter por opção ou não – no caso, repórteres e prostitutas. Enquanto Rahimi é recusada num hotel por ter feito uma reserva de um quarto sendo solteira, comunicando-se com homens sempre em autodefesa porque é julgada em todo movimento que faz, uma outra mulher, de roupa confortável, precisa cobrir-se de tecidos mantendo somente o rosto visível para poder sair de casa. Despede-se do filho, e vai trabalhar. O que identifica seu trabalho? A maquiagem e o salto alto.

Abbasi dá rosto (mas não nome) a todas as mulheres do filme, principalmente, às vítimas do serial killer. Não as generaliza, individualizando cada uma delas, mostrando suas vidas para além da profissão, seus filhos e famílias, de como são marginalizadas pela misoginia e expondo suas faces a cada crime cometido. O assassino, conhecido como spider por seu modus operandi, matava por estrangulamento, e o diretor faz questão de nos horrorizar ao fechar sua câmera nas expressões das mulheres que perdem suas vidas. O excesso de exposição pode soar como recurso meramente de choque (às custas, novamente, da exploração de corpos femininos). Porém, pode ser preparatório para o que virá a seguir: essa incontestável brutalidade criminosa foi aclamada por muitos como ato de heroísmo.

A segunda visão apresentada pelo diretor é a do assassino. Saeed Hanaei (Mehdi Bajestani) é um militar veterano, pai carinhoso e um esposo devoto, que às quintas-feiras costuma assassinar mulheres acreditando assim estar cumprindo com um dever sagrado. Vindo de uma família de “mártires” de guerra, acredita que dessa forma seu martírio será alcançado. Assusta que a figura dele possa remeter, após os atos terroristas e golpistas que horrorizados acompanhamos no nosso país, ao “cidadão de bem/patriota” brasileiro moralista que acredita, de forma semelhante, estar agindo em nome do bem do país, da família e da religião, e que se auto exalta.

A terceira visão pode se fundir com a segunda pela demora excessiva de Abbasi  na exposição do assassino. Trata-se da visão da sociedade, da cidade de Meshed em sua estrutura. A suspeita de Rahimi da proposital falta de empenho da polícia nas investigações, a condenação por pressão política, o risco da impunidade, a credulidade da esposa quando descobre os crimes do marido (“Nunca pensei que ele fosse querer bancar o herói”), o assassino visto como herói por uma sociedade cultural e estruturalmente misógina, que não vê mulheres sendo brutalmente assassinadas, mas um mártir purificando uma cidade sagrada.

Em entrevista cedida pelo diretor ao Festival de Cannes, ele afirma que sua intenção era fazer um filme não sobre um serial killer em específico, mas sobre uma sociedade serial killer. Holy Spider, entretanto, permite que a repugnante presença do assassino em série  seja muito marcante, memorável demais, o que nos parece o faz fugir de seu propósito de denunciar um aspecto social doentio. Nessa mesma entrevista, que você pode ler aqui, Abbasi  coloca o assassino como igualmente criminoso e vítima (social), o que mostra-se problemático e assustador, e reflete negativamente no filme.

Ao seu fim, Holy Spider se rende à repugnância do serial killer, esquecendo-se da força da resistência feminina que mostra em sua primeira visão, e perdendo-se em sua denúncia social. O que resta é o incômodo, a aversão, e talvez para a espectadora mulher como essa que vos escreve, a vulnerabilidade que nos faz recordar que a maquiagem que usamos e o cabelo que não escondemos nos tornam alvo.

Holy Spider estreia dia 19 de janeiro nos cinemas brasileiros, e é distribuído pela O2 Play. Chegará com exclusividade na plataforma Mubi em 10 de março.

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