Tár | 2022

Tár | 2022

Tár, filme dirigido por Todd Field, é um dos principais indicados ao Oscar 2023 em diversas categorias, incluindo melhor filme. O longa conta a história de Lydia Tár, a respeitadíssima maestrina – ou “a maestro”, como ela prefere – responsável pela condução de uma grande orquestra alemã. Protagonizado por Cate Blanchett, favorita ao Oscar de melhor atriz, o longa aborda temas como o abuso de poder e a discussão contemporânea sobre “cancelamento”.

Tár é muito eficiente em nos oferecer logo no começo uma visão geral da fama e reconhecimento que possui a personagem de Blanchett. Essa construção se dá, predominantemente, por meio de planos longos e também de cenas longuíssimas que conferem ao primeiro ato um ritmo mais lento. Essa escolha, contudo, não constitui aqui um problema, mas é fundamental para a construção da personagem. Além disso, os enquadramentos também são precisos nesse sentido, uma vez que são capazes de captar bem as expressões faciais ao mesmo tempo que, por meio do uso da câmera baixa, sugerem visualmente, desde o princípio, a grandiosidade de Tár. Tudo isso sem prejuízo de uma montagem que, embora simples, é capaz de trazer algumas pequenas pistas (como a página da Wikipédia da regente) que contribuem sobremaneira para a sua caracterização.

Toda essa construção possui uma função central para o desenrolar da narrativa. Ao final do primeiro ato, o espectador está ciente da relevância da personagem. Está também conectado a Tár e compreendendo se tratar de uma personagem complexa, bastante inteligente e disciplinada, mas também excessivamente rigorosa e manipuladora. De quebra, o espectador, à medida em que a conhece, é capaz também de aprender sobre o ofício de um(a) regente de orquestra. Não só no que diz respeito ao trabalho de reger, mas também aos desafios impostos pelas disputas por poder e status, o ego inflado entre os músicos e demais sujeitos envolvidos na administração de uma orquestra.

Importante mencionar também que, em paralelo aos méritos técnicos e da direção na construção da personagem, Cate Blanchett dá a Tár uma interpretação sublime. Se nos últimos anos Hollywood tem se destacado pela produção de longas sobre figuras famosas, em especial da música (como em Bohemian Rhapsody, Elton John: Rocket Man, Elvis e Whitney Houston: I Wanna Dance with Somebody), aqui há algo ainda mais desafiador: a criação de uma personagem sem uma referência concreta. Longe das maquiagens e trejeitos típicos de alguém já bastante conhecido, Blanchett tem a missão de construir efetivamente uma personagem que pareça real. Famosa, inteligente, admirada, mas por vezes também prepotente, arrogante, egocêntrica. O resultado é excelente, correndo o risco o espectador desavisado de sair da sala de cinema em dúvida se assistiu a um filme documental. A surpresa virá quando descobrir que “Lydia Tár” é fruto da criação de Field. Desde a origem, aliás, o filme foi pensando para a interpretação de Cate Blanchett.

Se há algum aspecto negativo que merece menção na construção da regente, talvez ele esteja justamente na elaboração diminuta dos demais personagens. São duas personagens coadjuvantes principais. Sharon Goodnow (Nina Hoss, de Phoenix) e Francesca Lentini (Noémie Merlanm, de Retrato de uma jovem em chamas). Ambas possuem seus arcos dramáticos pouco elaborados, funcionando apenas como base para o desenrolar da história de Tár. 

Ainda que o filme pudesse ganhar em complexidade ao dar mais camadas às demais personagens, a narrativa funciona bem ao centrar-se em Tár. A construção minuciosa dessa personagem cumpre um papel fundamental. Vemos desde o princípio Tár se pronunciar sobre assuntos polêmicos. A regente se nega a julgar anacronicamente artistas clássicos da música. Se recusa também a usar o termo “maestrina”, fazendo troça do fato de as astronautas não serem chamadas “astronetes”. Diz, ainda, não ter do que reclamar no que diz respeito à “questão de gênero”. Apesar disso, mesmo alguém mais afeito às pautas identitárias terá dificuldade em enquadrar Tár como uma personagem conservadora ou algo que o valha. Não só porque suas elaborações são sofisticadas – e se trata, portanto, de alguém que não carece de instrução –, mas também porque ela mesma é uma mulher, lésbica, e que precisa enfrentar situações bastante particulares, como se afirmar como “o pai” da sua filha para fazer valer seu reconhecido seu lugar de autoridade.

O espectador se percebe em uma situação embaraçosa à medida em que vê Tár envolvida em práticas nada louváveis, quiçá criminosas. Aquela personagem que, ainda que com ressalvas, rapidamente passamos a admirar, seria alguém digno de desprezo? A resposta não é simples, e certamente Todd Field e Cate Blanchett não se propõem a dá-la ao espectador. Há sinais suficientes para não crermos em uma inocência total da regente. Tampouco, contudo, temos acesso a todas as informações para considerar que o cancelamento a que foi submetida constitui algo realmente injusto. A reflexão sobre esse tema, que hoje tem sido fartamente chamado de “cultura do cancelamento”, não se propõe profunda. Ainda assim, há elementos suficientes para provocar o espectador nesse sentido: denunciar teria se tornado sinônimo de condenar? Os excessos do processo de cancelamento seriam comparáveis àqueles identificados no processo de “desnazificação” ocorrido na Alemanha pós-segunda guerra?

Os questionamentos ao longo de Tár vêm da própria regente, mas também de um jovem negro pangênero e outros personagens mais velhos, talvez mais conservadores. Oferecendo uma gama de visões diferentes, o longa se recusa a dar respostas prontas a todas as perguntas. O que faz – e isso é uma tarefa que o cinema possui especial capacidade de fazer ­– é nos colocar no lugar daqueles que normalmente, ainda que apressadamente, julgamos ser alvo de desprezo. Essa tarefa definitivamente não é simples, mas sim um andar na corda bamba para não transformar em vítima alguém que pode ser, de fato, um(a) assediador(a), ao mesmo tempo em que também produz conexão para que o espectador não caia na tentação fácil do punitivismo ou do que hoje se compreende por “cancelamento”. 

Os méritos técnicos de Tár são muitos, mas, sem dúvida, o desempenho de Cate Blanchett é indispensável para que se chegue a um filme tão bem-sucedido em sua missão de jogar luz a questionamentos tão importantes. Melhor que os filmes que se propõem a oferecer respostas são os que oferecem boas perguntas. O novo filme de Todd Field cumpre muitíssimo bem essa tarefa.

Nota

O Coletivo Crítico assistiu o filme a convite da Espaço Z. Tár estreia nos cinemas do Brasil nesta quinta-feira (26/01/2023).

Author

  • Rodrigo Badaró

    Natural de Belo Horizonte, é Cientista Político (UFMG), cruzeirense, músico e aspirante a crítico de cinema. A maior especialidade está em enxergar a política em todos os lugares, especialmente naqueles que mais ama: o futebol, a música e o cinema.

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