Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo | 2022

Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo | 2022

Em algum momento da vida você deve ter se perguntado: e se eu tivesse escolhido aquele outro caminho? As coisas poderiam ter sido diferentes? Talvez aquele sofrimento não tivesse que ser sentido e o ressentimento poderia ser menor agora. Como diria o mais popular dos filósofos existencialistas, Jean-Paul Sartre, escolher é a condição humana: “estamos condenados à liberdade”. A todo momento precisamos lidar com a nossa consciência e o peso de nossos atos, ou então, da nossa falta de ação. Um mínimo movimento interfere em uma escala muito maior do que só a nossa vida, cruzando diversas possibilidades. Além de mim, existe o outro. Existe o ser inacessível, incompreensível, que, com seu olhar, me julga pelas minhas decisões. O nosso grande dilema enquanto seres racionais é justamente essa relação eu-outro diante da liberdade e de suas consequências. É um processo infinito e indissociável da vida, são multiversos que se abrem a cada instante e com os quais temos que lidar, tudo em todo lugar ao mesmo tempo.

É com essa matéria-prima existencial que os Daniels (Daniel Kwan e Daniel Scheinert) criam Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo, surpresa da temporada de premiações, despontando como favorito ao Oscar 2023, somando 11 indicações. Os cineastas acabaram de ganhar o prêmio de melhor direção pelo Sindicato dos Diretores, o que dá muita força à mesma categoria do Oscar. É bem possível que o filme leve várias estatuetas de uma só vez, algo que não tem acontecido com frequência. O sucesso é justificável se olharmos para o filme com uma marcação contextual bem precisa. A indústria cinematográfica passa por um momento diferente com a retomada das sessões pós-pandemia e o advento da era do streaming. A demanda é por um entretenimento mais dinâmico, que atraia o público, que seja fácil e didático. Méritos que Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo apresenta.

Acompanhamos a família Wang, imigrantes chineses nos Estados Unidos proprietários de uma lavanderia. O casal Evelyn e Waymond (Michelle Yeoh e Ke Huy Quan), a filha Joy (Stephanie Hsu) e o avô, pai de Evelyn, Gong Gong (James Hong) já nos são apresentados em meio ao caos. Os negócios estão sendo fiscalizados pelo governo e não andam nada bem; a mãe não vê com bons olhos a relação homossexual da filha; o avô é debilitado pela idade e por não falar inglês; por fim, Evelyn e Waymond estão prestes a acabar o casamento. Os momentos de alegria e paz naquela família são vistos apenas como flashbacks muito rápidos, que logo dão lugar à confusão.

O conceito de multiverso nos é dado desde o princípio, quando a câmera dos Daniels entra por um espelho, começando a história como um reflexo. O peso das escolhas de Evelyn já está em seu semblante enquanto lida com a papelada da fiscalização tributária. Waymond tem um jeito excêntrico que irrita sua esposa misturando inglês e mandarim com sua voz fina. Joy quer ser compreendida pela mãe e tenta puxá-la para uma conversa que nunca acontece. No meio de tudo isso há um almoço sendo feito, clientes para serem atendidos e outros reclamando do serviço. Evelyn carrega em si aquele questionamento existencial sobre liberdade e suas consequências.

Na cena seguinte, reforçando a ideia dinâmica e empolgante do filme, temos quase toda a trama apresentada em poucos minutos. Um estranho Waymond revela que veio de outro universo para salvar todas as possibilidades do caos total, sendo Evelyn a peça chave para esse equilíbrio. O estilo usado pelos Daniels é o mesmo que foi visto em Um Cadáver Para Sobreviver (2016): o inconveniente, o inconcebível, são por eles explorados a todo momento e sem pudores. Tanto é que os atos inesperados são os propulsores para a transição de multiversos, desde colocar os calçados ao contrário até soprar o nariz de uma pessoa. Evelyn se vê na encruzilhada da vida, mas ainda não entende muito bem o motivo.

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Assim como uma mente perturbada pelas infinitas possibilidades diante de uma ação, o filme assume sua forma caótica. Os multiversos dão ao elenco a possibilidade de mostrar seu talento passando por diferentes gêneros. O maior destaque, que vem sendo muito comentado nas premiações e festivais, está nas atuações de Michelle Yeoh e Ke Huy Quan. No caso de Quan, como seu personagem é um viajante de multiversos, é o primeiro a demonstrar suas habilidades. A mudança repentina de um homem irritante a um exímio lutador de artes marciais faz com que o espectador veja logo sua capacidade. Aliás, as cenas de luta são muito bem coreografadas e fotografadas. Não demora e também temos Yeoh absorvida por esse contexto, passando de mãe angustiada, empresária ocupada, imigrante deslocada, à detentora dos melhores golpes de kung-fu. É assim também com Jamie Lee Curtis, assumindo o papel de vilã de forma muito competente. Não são exceções James Hong e Stephanie Hsu, esta exibindo os mais extravagantes figurinos e maquiagens em diferentes multiversos. Dentre estas atuações, apenas Hong não foi reconhecido com uma indicação ao Oscar.

Além das cenas de artes marciais, há também os momentos dramáticos, que remetem muito à filmografia de Wong Kar Wai, dando a oportunidade de Yeoh e Quan também mostrarem seus dotes nessa forma. Entretanto, o que prevalece é a comédia. O absurdo das composições de cena levam o espectador ao riso, mesmo sabendo do peso dramático de tais situações e do dilema das escolhas de Evelyn. Aos poucos a condição existencial humana vai emergindo à superfície da personagem, então Yeoh passa do ar confuso inicial ao de serenidade enquanto parece tomar as rédeas de sua própria vida e assume suas decisões diante de sua família.

À respeito da direção dos Daniels, o mérito está em não perder o controle sobre todos os elementos lançados ao caos da narrativa. A montagem (Paul Rogers) e a trilha sonora (Son Lux), ambos indicados ao Oscar, contribuem para a dinâmica da história. Mesmo diante de inúmeros multiversos, personagens que assumem outras características e funções, o espectador não se verá perdido, sendo retomada a linha principal e a trama por flashbacks pontuais. A construção de Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo não é tão inovadora aos fãs de Sr. Ninguém, filme de 2009 dirigido por Jaco Van Dormael, que também aborda a existência de multiversos. Ambos partem das reflexões sobre as escolhas de um personagem para evidenciar o dilema humano. A diferença é que em Sr. Ninguém a conclusão é muito mais aberta e melancólica.

O viés mais interessante de Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo está em não olhar unicamente para a ficção científica em torno do multiverso, mas também à existencialista citada no primeiro parágrafo. O arco dramático que devemos considerar é a relação mãe e filha. O quanto as decisões de uma mãe se tornam mais pesadas quando elas se referem à vida da filha? O quanto de culpa pode ser assumida pelas escolhas da mãe? Percebemos que o vilão dos multiversos é muito mais forte do que Deirdre e sua burocracia estatal. A subjetividade de Evelyn afetada por todas as suas decisões até aquele momento também afeta os outros. Parafraseando, somos um fracasso sozinhos. Isto porque não há como construir a si mesmo fora da relação com o Outro. Portanto, Joy não é tão alegre quanto seu nome, vendo que sua mãe a carrega também como um fardo. Afinal, o Outro me constrói ao mesmo tempo que me limita.

A angústia é parte da natureza do humano inquieto. Ao pensarmos em tudo que poderíamos ter sido e não fomos, em tudo que poderíamos ter feito e não fizemos, em momentos que poderíamos ter aproveitado e não os escolhemos, nos é lançada a condição de nossa existência. Como não cair no caos total? Um buraco negro, ou uma rosca, como no filme, pode ser facilmente a solução. Mas seria o ponto final? Seria esse o sentido? De um lado a vida mecânica e mercadológica, cheia de papéis e burocracias; de outro nosso inconsciente todo atribulado de traumas e ressentimentos. Quanto menos nos entendemos, quanto menos nos abrimos ao entendimento, mais sucumbimos.

Se atualmente a moda é fazer filmes de fácil consumo, é louvável que Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo tenha sucesso com questões tão importantes de nossa existência. Mas, ao mesmo tempo, é um tipo de Cinema que caminha para reforçar uma forma de vida pautada pela satisfação momentânea. Os Daniels replicam o que já haviam feito em Um Cadáver Para Sobreviver, mas aqui de um jeito infinitamente melhor. O ato final é didático ao extremo para atender essa nova cinefilia um tanto quanto despretensiosa. Não ficam questões em aberto, já que tudo se resolve ali mesmo na tela. Talvez seja essa a nova forma da indústria cinematográfica, baseada no dinamismo e no didatismo. Nesse sentido os Daniels fazem sucesso. O filme é um entretenimento que vale a pena, tecnicamente bem feito e muito divertido.

Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo estreia na Amazon Prime Video dia 24/02.

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