Close | 2022
O diretor belga Lukas Dhont, de 31 anos, possui uma capacidade ímpar e um cuidado afetuoso na leitura de crianças e adolescentes queer. Sua câmera não é só acurada a ponto de trazer, mesmo em meio a temas muito delicados, uma pureza na atmosfera de seus filmes, como é, de fato, uma câmera curiosa e respeitosamente desesperada para desvendar seus personagens. Se em Girl Dhont aproxima o espectador das dificuldades internas e externas enfrentadas pela adolescente Lara na transição de gênero mesmo no melhor cenário familiar e estrutural possível, em Close, filme que concorre ao Oscar de Melhor Filme Internacional, e que ganhou o Grand Prix no Festival de Cannes 2022, sua curiosidade se volta para dois amigos inseparáveis que se distanciam após o retorno do período escolar, Léo (Eden Dambrine) e Rémi (Gustav de Waele), voltando sua atenção, posteriormente, à Léo.
A urgência da câmera de Dhont não é deslocada, mas se justifica no estudo de seus personagens, que carregam uma bagagem explosiva de sentimentos sem conseguir expressá-los em palavras e nem aliviá-los com um consolo. O diretor trabalha as consequências de um acontecimento grave (que jamais ousaria revelar aqui, pois muda bastante o rumo do filme) do ponto de vista de Léo, cujo fardo é tão grande e cujas palavras são tão poucas, que o nó que nitidamente existe em sua garganta é sentido pelo espectador.
Os muitos não ditos não se limitam a Léo. A família e amigos ao seu redor compartilham da mesma dificuldade de expressão. O alívio dos sentimentos é encontrado na atividade, na ação, na fuga dos pensamentos. Léo é uma criança intensa e cheia de energia, e isso se reflete na fluidez com que Dhont nos mostra sua ativa rotina: o garoto brinca com os amigos, vai à escola, pratica (com uma autoexigência raivosa) hóquei no gelo, anda de bicicleta, ajuda a família no campo de flores realizando trabalhos braçais, plantando, colhendo, sujando as mãos de terra. Ainda assim, mesmo imerso numa rotina extremamente cansativa, à noite, acompanhamos um Léo que não consegue dormir, que faz xixi na cama, e que recorre à cama do irmão para passar a noite.
O campo de flores é o ambiente de trabalho da família de Léo. Pai, mãe e irmão trabalham no plantio e na colheita, e o local é uma escolha fácil para exalar beleza ao filme. As cenas de colheita, quando as flores estão em sua maior exuberância, são inevitavelmente belíssimas. Dhont nos mostra Léo muito dedicado no auxílio da família, aprendendo o ofício desde muito cedo. O que a princípio parece um trabalho pesado, como o próprio personagem nos diz, a prática o torna cada vez mais fácil. A metáfora que Dhont entrega com o peso das sacas de terra que Léo precisa carregar, fardo intenso para sua idade, e o peso psicológico suportado por ele, é a síntese de sua falta de palavras. O alívio para ambos é o mesmo: a prática, o costume, a rotina. Os fardos tornam-se leves quando acostumamos a carregá-los.
Há uma constrangedora cena em que a família de Rémi e Léo se encontram para um jantar, onde o peso de um acontecimento paira no ar. A rotina que continua como fuga do enfrentamento dos sentimentos e das situações está toda presente ali. Embora o peso seja nítido, os personagens estão desesperados pela aparência do “estar tudo bem”, evitando ao máximo falar sobre o que de fato os une ali. Mesmo claramente necessitando com urgência do consolo e do diálogo, é o caminho oposto que seguem. A forma como Léo foge da presença da mãe de Rémi é bem reflexo dessa leitura, e o espectador anseia para que esse encontro aconteça.
Dhont faz questão, ainda, com muita sutileza, de deixar transparecer a frieza dos adultos quando precisam direcionar crianças e adolescentes na elaboração de suas emoções. Quando a escola busca criar um ambiente que deveria ser acolhedor para a expressão desses seres em formação, o faz de forma impositiva, como um dever de casa, e quando uma criança de fato resolve se expressar de forma verdadeira, é afastada por um frio “todos terão sua vez de falar”. O efeito do encontro é o oposto. Cria-se, desde a infância, adultos silenciosos.
A cama e os momentos que precedem o sono profundo (ou a ausência dele) são, inclusive, muito interessantes à Dhont, que preenche muitos minutos da tela nos rostos de Léo e de Rémi em seus travesseiros, sob a escuridão noturna. O que pode soar excessivo não é despropositado. Há muita solidão, vulnerabilidade e intimidade nesses momentos. A relação dos meninos é tão profunda que a intimidade do “dormir” ou do “não dormir” é compartilhada de forma muito doce. A cumplicidade dos dois supre a solidão do sono. Ali, há refúgio entre eles.
Há uma cena muito bela nesse contexto pré-sono. Léo percebe que Rémi não consegue dormir, e ao questioná-lo o motivo, a resposta simples, mas tão significativa (e tão sutilmente indicativa do que há de vir): “Minha mente, ela não consegue parar”. Então, para acalmar o amigo, Léo conta-lhe uma história sobre um patinho amarelo, que apesar de ser amarelo como seus irmãos, era muito especial e por isso acabou se deslocando dos demais. Nessa história, o diretor insere delicadamente a personalidade de Rémi, um garoto sensível, inseguro, doce, com dificuldades de se relacionar com outras crianças porque se vê diferente delas, e que encontra sua paz em Léo.
Diferentemente de Rémi, Léo, apesar de calado quanto aos próprios sentimentos, é uma criança expansiva e ágil que rapidamente se impõe sobre os colegas e que desesperadamente quer pertencer, se mostrar e ser visto como forte. A busca por um esporte que não atende exatamente ao seu tipo físico e seus esforços para não sofrer com o bullying dos colegas o faz repelir a intimidade e a amizade com Rémi.
O afastamento causado por Léo é reflexo da abordagem sutilmente violenta e homofóbica dos colegas no que diz respeito à relação dos dois amigos. Os amigos, a princípio, não hesitam em levar a cumplicidade entre eles para o ambiente escolar, por exemplo, ao sentarem-se juntos na sala de aula e apoiarem suas cabeças um no outro. O gesto carinhoso e bonito, porém, é visto com estranheza pelos colegas. Logo são abordados com questionamentos: “Vocês estão juntos?”.
O Léo que se mostra defensivo à relação de ambos inicialmente (“Nós somos tão amigos que somos como irmãos”), logo passa a se incomodar, e se vê num dilema moral cuja falta de maturidade e pressão social não o permitem elaborar. Quando Rémi o busca para se deitar em sua barriga na grama sob o sol, Léo o repele, e passa a agir com violência com o amigo, reflexo da falta de elaboração de seus sentimentos. O pesado fardo que desde a infância é imposto, do questionamento moral de uma relação pura e bonita, do padrão socialmente aceito de amizade masculina, do carinho e do afeto sempre visto sob o olhar homofóbico da sociedade, da violência desde muito cedo reprimida pelas pessoas queer.
Dhont quase parece perder a mão de sua sutileza para o melodrama. O longa, por sua própria temática, é denso e dramático por si só, a comoção ocorre naturalmente. O diretor poderia pender para muitos artifícios melodramáticos que, de fato, tornariam seu filme talvez apelativo. Ele foge de tais recursos. A delicadeza e a sutileza, que já citamos aqui, tão próprias de seu cinema, são seus refúgios aptos a afastar o fácil caminho do excesso. O uso de closes (daí, o título do filme) funcionam mais para estudar os personagens do que para comover forçadamente o espectador.
O que o diretor consegue fazer em seus filmes é aproximar o espectador da infância e da adolescência queer, cuja expressão a sociedade mutila aos poucos assim que a formação de identidade se inicia. No caso de Close, essas amarras da vida adulta não se limitam às crianças queer, evidenciando que a herança psicológica de adultos solitários é a criação de crianças que descobrem na solidão um amparo muito duro. Sob o olhar sensível e verdadeiramente interessado de Lukas Dhont, há equilíbrio – o filme é duro, mas há nele uma pureza e uma inocência que faz o espectador, quem sabe, assistir o filme mais uma vez.
Assistido via cabine de imprensa a convite da O2 Play e da Mubi Brasil.