La Parle | 2023

La Parle | 2023

Na espera também acontece muita coisa

Nosso subconsciente transforma alguns elementos em símbolos que automaticamente nos remetem a uma lembrança ou a um estado. Praias e oceanos, mesmo para aqueles que não o conhecem, são capazes de nos colocar muito próximos de um estado reflexivo, de uma não-passagem do tempo, de uma necessidade de pausa. O vai-e-vem das ondas do oceano ditam o tempo perfeito para o ato humano de inspirar e expirar, um tranquilizante decorrente dessa indução rítmica.

Na costa basca francesa, pessoas se reúnem para vivenciar a La Parle, onda famosa em formato de olho que revira sentimentos e resoluções. É ao redor da onda que intitula o filme que os diretores amadores Fanny Boldini, Gabriela Boeri, Kevin Vanstaen e Simon Boulier constroem esse projeto, quase inteiramente filmado com iPhones e fruto da residência artística Les Ateliers du Cinéma (promovida pelo cineasta francês Claude Lelouch) como algo leve, consciente de si e muito íntimo.

Exibido na 46ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, na competição Novos Diretores e estreando agora nos cinemas brasileiros, em La Parle os quatro diretores são exatamente os quatro protagonistas do longa. Fanny, Kevin e Simon visitam a costa basca francesa para passar as férias de verão com Gabriela, uma amiga brasileira. Com objetivos distintos, os amigos fazem das férias uma pausa para todo o resto dos acontecimentos da vida. O que a princípio era planejado como uma jornada individual, adquire uma força coletiva na medida em que a identificação do grupo cresce.

A metáfora das ondas como a sucessão de obstáculos e desafios que enfrentamos ao longo da vida não é nada sutil. Essa clareza, porém, não torna o longa menos interessante, mas atribui ainda mais intimidade ao projeto. Muito do que há de mais pessoal em La Parle é fruto do seu aspecto natural, quase documental, semi biográfico e amador.  Inclusive, La Parle parece brincar com seus excessos. O personagem de Kevin, naquele contexto de férias, tem dificuldades de se desvencilhar do trabalho e deseja ocupar aquele tempo de pausa com a montagem de um filme seu. Não consegue se fazer presente e buscar com sua câmera captar imagens bonitas que podem ser úteis para algum projeto futuro. Da mesma forma com que Kevin capta imagens apenas por sua beleza, o longa faz chover a beleza das praias, das ondas sendo surfadas, do sol iluminando o oceano, imagens que soam excessivas e clichês, mas que bem se adequam ao propósito de La Parle, que sempre retoma ao espectador um estado mais calmo e meditativo. Acabam, por fim, por suprir a falta de conteúdo narrativo sem, entretanto, pesar o projeto.

A contemporaneidade dos desafios dos personagens é contraposta pela escolha do preto e branco. Funciona, também, como um deslocamento das férias da realidade de cada um deles, que se alternam entre se fazerem presentes ao momento vivido e a angústia proporcionada por suas crises pessoais.

Fanny passou por um tratamento médico e aguarda o resultado de um exame, recusando todas as ligações de sua médica durante essa pausa da vida (ligações que vão se mostrar um artifício dramático bastante dispensável). Gabriela divide-se entre viver a França e manter-se conectada com sua família no Brasil, especialmente sua avó, de quem é muito próxima. A avó de Gabriela Boeri, a quem o filme é dedicado, faleceu durante a produção. Kevin precisa terminar um filme, mas se aflige por sua relação com o pai. Simon busca diversão nas férias, mas se vê entediado e fugitivo de suas próprias reflexões. Cada um surfa sua própria onda.

Cada drama pessoal parece conectar os personagens aos seus celulares. Enquanto juntos formam um elo nutritivo, quando sós enfrentam suas questões através do celular, seja nas ligações de Gabriela
à avó, seja nas tentativas frustradas da médica de Fanny em manter contato. Parece que a vida real, de fato, a vida para além da espera proporcionada pelas férias, está diretamente ligada e dependente dos telefones celulares.

La Parle consegue trazer à costa francesa um ar afetivamente brasileiro. As confortáveis luzes solares sobre o mar, as ondas e os surfistas, a bossa nova que compõe a trilha sonora, a presença da canção Até Amanhã, de Ivan Lins e Emilio Santiago, o topless sem pudor, a referência à língua portuguesa como bela e sonífera, todos os elementos se unem para abrasileirar a Europa como uma base de apoio de Gabriela.

 O tempo das férias, da pausa, é um tempo de espera. O tempo da espera não é cronológico, não é contado no relógio. La Parle é um filme de aprendizado dos cineastas, que têm consciência disso e não ousam ou se destacam em termos de linguagem cinematográfica, permanecendo num lugar bastante afetivo que funciona muito bem. Ainda assim, encontra espaço para reverenciar a necessidade de pensar e sentir o tempo como ensinamento do ato de surfar as ondas, tomar decisões, encontrar soluções. É um filme paciente e que se autonomeia “Filme para dizer eu te amo”. Que pelo uso conveniente da cor azul vem dar um abraço para dizer que está tudo bem. Que anomalias fazem parte da vida. Que o mar está aí, à espera de ser surfado.

La Parle estreou nos cinemas brasileiros em 29 de junho.

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