A Noite do Dia 12 | 2023

A Noite do Dia 12 | 2023

Uma mulher é morta a cada 6 horas no Brasil. Esses são os dados do levantamento do Monitor da Violência realizado em 2022, ano em que o Brasil bateu recorde de feminicídios. No total, foram 1,4 mil mortes motivadas pelo gênero, um aumento de 5% em comparação ao ano anterior.

A estrutura de investigações criminais em nosso país perpassa, de forma bastante sucinta, as instituições da Polícia Civil e do Ministério Público, encontrando suas soluções (ou não) no Poder Judiciário. Segundo levantamento realizado pelo IBGE em 2020, na esfera estadual e distrital, mulheres são apenas 27,6% das policiais civis. O Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) revelou que, em estudo realizado em 2018, o Ministério Público brasileiro é composto por 39% de mulheres. Por fim, o Censo do Poder Judiciário constatou, em pesquisa divulgada em 2018, que conta 35,9% de magistradas, e que na escalada de carreiras, quanto mais alto o cargo, menor a participação feminina: apenas 16% dos ministros de tribunais superiores são mulheres.

De tais dados, chegamos à seguinte conclusão: enquanto o feminicídio bate recordes assustadores, quem investiga, denuncia e julga tais crimes e criminosos (homens) são, majoritariamente, homens. Homens investigam homens, homens denunciam homens e homens julgam homens. Essa proposital repetição dessa palavra de identificação de gênero, revela algo no mínimo muito equivocado nessa estrutura, quiçá a resposta dos motivos da perpetuação desse ciclo de morte e de privilégios.

Dito isso, chegamos em A Noite do Dia 12, filme de Dominik Moll, que estreará nos cinemas brasileiros no próximo 13 de julho. Vencedor do festival francês César Awards nas categorias melhor direção, melhor roteiro adaptado (do livro da francesa Pauline Guéna), melhor som, melhor ator promissor, melhor ator coadjuvante e melhor filme, o longa nos lança no universo de investigações da polícia francesa, quando a jovem Clara é brutalmente assassinada, iniciando-se uma complexa busca por seu assassino. Ou seria uma busca por justificativas que possam culpar Clara pelo fato que a vitimou?

O protagonista do filme é Yohan (Bastien Bouillon), um recém instituído detetive de polícia que lida com o assassinato de Clara (Lula Cotton-Frapier) em sua primeira noite na chefia do departamento (a noite do dia 12). Acompanhamos as minúcias da investigação desde a perícia do local do crime e do corpo vitimado, da notícia da morte de Clara a seus familiares e amigos, perpassando pela inquirição de todos os possíveis suspeitos, pelas burocracias e relatórios que compõem o trabalho investigatório, até os efeitos da exaustão trazida pela complexidade do caso.

Mais do que desvendar o assassinato, inicia-se uma jornada que busca destrinchar a personalidade da vítima: Clara namorava? Clara traía o namorado? Quem são os homens com quem se relacionava? Por que se relacionava com tais homens? Clara era uma jovem “fácil”? Tinha problemas com drogas? Todas essas questões que findam mais por julgar a vítima do que encontrar seu assassino são colocadas em xeque por Yohan, que começa a perceber os problemas de sua própria instituição e de seu próprio gênero.

Perceba que trata-se de um filme que quer denunciar um paradoxo em que ele mesmo está inserido. A Noite do Dia 12, que nos conta uma história sobre a investigação de um feminicídio, é dirigida por um homem, teve reconhecidos em premiações o trabalho de atuação dos homens do filme, sendo um filme em que pontualmente se vê uma ou outra mulher em cena.

Não se pretende aqui, de forma alguma, apontar que filmes que abordem temáticas de gênero devam se restringir à direção feminina. Inclusive, em A Noite do Dia 12, há uma clara intenção de escancarar o machismo institucional e estrutural percebido pelo ponto de vista masculino, sendo muito um filme que reflete, também, masculinidades. Entretanto, quando há o compromisso de pontuar denúncias como tais, que traduzem fatos gravíssimos vivenciados ao redor do mundo todo e que, como dissemos, podem vitimar mulheres a cada 6 horas, a fidelidade dessa obra cai por terra quando coloca seu protagonista em uma posição superior e imune a essas estruturas adoecidas, ou que apazigua e justifica a imagem e existência de policiais notadamente violentos. Domink Moll faz sua denúncia, trabalha seu filme em cima dela, mas mantém a si e a seus personagens homens num lugar muito confortável.

A exemplificar esse lugar problemático em que o filme se coloca, o personagem Marceau (Bouli Lanners) é um policial da velha guarda, que vem passando por dificuldades em seu relacionamento após o divórcio. Por anos tentando ter filhos com sua esposa, Marceau tem sua masculinidade desafiada ao descobrir que foi traído, e que o amante de sua mulher a engravidou. Inconformado não só com o fim do relacionamento, mas com sua suposta incapacidade de gerar filhos, o personagem revela uma obsessão com a ex-esposa, e finda por projetá-la em outra mulher que cruza o caminho da investigação. Marceau quer fazer justiça com as próprias mãos para essa mulher, invadindo seu apartamento para violentar seu companheiro. A violência e total falta de estrutura psicológica do policial recebe o perdão do diretor, que “passa pano” para Marceau, afastando-o das telas para colocá-lo numa jornada de autodescobrimento meio eremita.

Domink Moll, com os poucos papéis femininos que dispõe, não faz melhor. Muito embora pareça ter o propósito de colocar a esperança de cura desse sistema nas mulheres, se satisfaz em inseri-las numa posição de não-vítimas apenas na parte final de seu longa, através das personagens da juíza sem nome (Anouk Grinberg) e da policial Nadia (Mouna Soualem). Até então, as mulheres que perpassam o filme são tão julgadas quanto a própria Clara.

É justo dizer que A Noite do Dia 12 rende bons momentos de tensão, acertando ao colocar todos os homens da vida de Clara como potenciais suspeitos e assassinos, muito embora escancare o tratamento diferenciado que o único suspeito negro recebe em comparação com os demais, sem esclarecer se quer, ali, denunciar um racismo ou não. Entretanto, a neutralidade do posicionamento do diretor para com a temática que aborda se mostra presente também na falta de criatividade que permeia tudo. Domink Moll é protocolar, e parece se limitar a colocar a história em tela sem de fato utilizar-se das possibilidades criativas da linguagem para fazê-lo.

A Noite do Dia 12 carece de coragem para abraçar seu propósito. Mostra-se um filme que tem medo de si próprio, medo do que ele mesmo procura revelar. Por fim, permanece mesmo num lugar seguro e confortável proporcionado pela condição privilegiada de seus realizadores.

A Noite do Dia 12 estreia nos cinemas brasileiros em 13 de julho, com sessões de pré-estreia, justamente, na noite do dia 12. Agradecemos à Sinny Assessoria pelo convite para a cabine do filme.

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