Blue Jean | 2023

Blue Jean | 2023

Margaret Thatcher foi uma política britânica controversa e ainda muito referenciada nos dias de hoje. Seu governo, entre as décadas de 1970 e 1980 notadamente trouxe, com vigor, a ideia de um “triunfo da governamentalidade neoliberal”. Inclusive, muitos relevantes autores (por todos, cito David Harvey) indicam que a consolidação do neoliberalismo como uma ortodoxia econômica surge nos Estados Unidos (de Reagan) e na Grã-Bretanha (de Thatcher) no mesmo ano: 1979.

Esta “revolução neoliberal” atribuída a Thatcher ocorreu utilizando-se de meios democráticos e contou com um “consentimento popular”, muito afetado (ou até mesmo gerado) a partir de influências ideológicas divulgadas pela mídia,  mas, principalmente, que circularam com força em escolas e universidades.

Importante lembrar que é neste período que o mundo está “descobrindo” o HIV, o que foi utilizado para a intenso elemento de discriminação, sobretudo, de homens gays. 

Tem-se que o Partido Conservador britânico soube, de alguma forma, capitalizar este “furor anti-LGBT” e, no poder, conseguiu promulgar normativas que concretizavam políticas discriminatórias contra este grupo vulnerabilizado.

É neste cenário de intensa divulgação (e circulação) de pautas conservadoras nas escolas britânicas que se situa Blue Jean, primeiro longa-metragem da britânica Georgia Oakley e que é permeado por uma questão que considero pouco divulgada (ao menos no Brasil) dada a sua relevância: a Section 28, norma absolutamente discriminatória contra gays promulgada no governo de Thatcher, que, entre outros aspectos, trazia, em seu “box 5” (em uma tradução livre):

(…)

 Uma autoridade local não deve:

a) promover intencionalmente a homossexualidade ou publicar material com a intenção de promover a homossexualidade

(…)

Blue Jean parte da vida da professora de educação física Jean (interpretada por Rosy McEwen) que, após um casamento heteronormativo atravessado pelo divórcio, passa a engajar-se secretamente em relacionamentos homoafetivos naquela Grã-Bretanha que cada vez mais repudiava “comportamentos homossexuais”.

A diretora Georgia Oakley é extremamente bem sucedida ao trazer uma tensão  ao espectador no que diz respeito a uma possível descoberta da sexualidade de Jean, que, ocorrendo, certamente lhe trará bastante sofrimento.

Em cenas absolutamente sensíveis e marcantes, o espectador observa a professora isolada na sala dos professores; tendo que mentir acerca de seus relacionamentos para seus familiares e só conseguindo “ser quem ela é” em locais do underground e nitidamente marginalizados.

 Jean não precisa ir longe para ser lembrada da discriminação que gays sofrem na Grã-Bretanha de Thatcher, afinal, é constantemente recordada disto seja por ouvir colegas de trabalho vociferando tolices discriminatórias, seja avisos nas ruas louvando os comportamentos conservadores.

Há aqui uma maravilhosa construção da aura dos anos oitenta, destacando-se o design de produção e singelas pitadas oitentistas trazidas na narrativa, dentre as quais destaco a cena em que Jean lê um conto infantil para o sobrinho e, na narrativa, há a presença de um personagem que fuma narguilé (dispositivo oriental utilizado para fumar essências que contêm tabaco, melaço e frutas/aromatizantes).

A performance de Rosy McEwen é muito competente, emprestando a Jean uma contagiosa angústia que, sem dificuldade, atinge em cheio o espectador.

É importante mencionar que a entrada de Jean naquele “mundo marginalizado” é recente e, notadamente, ela possui ainda uma série de obstáculos e amarras trazidas pela força da ideologia conservadora. Hoje, talvez diria-se que Jean não possuía o adequado letramento, o que se mostra a partir dos diálogos que trava com sua namorada Viv (Kerrie Hawes). Em um diálogo potente, Jean afirma que “nem tudo é político”, instante em que sua companheira reage prontamente.

O que se percebe, de forma avassaladoramente triste, é a manutenção da ideia de que as escolas têm se tornado um antro de divulgação de “ideais homoafetivos” e, diante disso, é mais do que necessário “proteger nossas crianças”. Blue Jean retrata uma realidade inglesa da década de 1980, mas que para nós, brasileiros, esteve há pouco tempo em pauta nos noticiários com a ilusão da existência do “kit gay” nas escolas (algo que, por aqui, também foi capitalizado por grupos políticos conservadores). 

 Para além da agonia constante trazida pela possibilidade de Jean ter sua sexualidade descoberta pelos seus colegas de trabalho ou pela sua família, há, em paralelo, uma outra faceta desta nefasta legislação: a discriminação entre os próprios alunos(as) e como o discurso anti-LGBT não é apropriado somente por adultos, mas são reproduzidos (talvez de forma ainda mais sádica) pelos jovens. 

Ao encontrar sua aluna Lois (Lucy  Halliday) em um bar gay, Jean se sente invadida e não consegue lidar bem com os sentimentos que decorrem disso. Naquele momento, sua vida privada, que precisa esconder, conecta-se com sua vida profissional, o que lhe causa sofrimento diante da possibilidade de sua demissão e defenestração pública além de lhe atrair para um dilema atroz e interessantíssimo. Aqui, no que julgo o grande momento do filme, o espectador é levado a pensar “o eu do outro” e a se transportar para a posição de Jean, interpretar sua história, suas dores e seus anseios, o que é exatamente uma das mais importantes sensações que o Cinema pode proporcionar. 

Blue Jean, apesar de ser lançado em um período de clara ascensão da extrema-direita em diversos países do mundo, ainda consegue trazer uma mensagem positiva de esperança, enaltecendo, inclusive, a possibilidade da ação coletiva como grande arma para combater toda sorte de arbitrariedades.

Nota

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  • O representante do Pará no Coletivo Crítico que, entre o doutorado em Direito e os jogos do Paysandu, não dispensa uma pipoca para comer, uma Coca Cola gelada para beber e um bom filme para ver.

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