O Kaftan Azul | 2023 | Mostra de Cinemas Africanos
O ordenamento jurídico marroquino criminaliza a relação afetiva entre pessoas do mesmo sexo. O perturbador e desumano artigo 489 do Código Penal do país norte-africano pune “atos licenciosos e contranatura com pessoas do mesmo sexo” com penas de seis meses a três anos de prisão e multas. Não só atribui pena privativa de liberdade, como expõe publicamente pessoas LGBTQIA+. Ainda não há nada no mundo que obrigue países como o Marrocos a reverem seus diplomas legais para mudança dessa situação. Leis, em todos os países, vêm e vão, de acordo com a política vigente. Existem cláusulas protegidas, como por exemplo, as chamadas Cláusulas Pétreas no Brasil, mas a fragilidade de algumas democracias coloca em xeque até mesmo a estabilidade de tais dispositivos.
Nesse contexto de repressão violenta a pessoas LGBTQIA+ de forma plenamente chancelada e instrumentalizada pelo Estado, a diretora Maryam Touzani constrói O Kaftan Azul, exibido no Festival de Cannes na Mostra A Certain Regard, um drama de discrição e sutileza muito pautado nos gestos e olhares para abordar tanto a homossexualidade no Marrocos, como a iminência da morte de um dos personagens e as decisões que se relacionam a esse acontecimento.
Touzani nos apresenta o casal Halim (Saleh Bakri) e Mina (Lubna Azabal), que tocam juntos um ateliê de costura de cafetãs – tradicionais e finas túnicas usadas pelas mulheres marroquinas. Halim é quem exerce o ofício delicado e minucioso da costura à mão. Com habilidade e paciência, ele preza pelo trabalho manual enquanto a maioria dos cafetãs são feitos por máquinas. Mina é quem administra o ateliê e defende o ofício do marido quando clientes questionam seu trabalho. O casal contrata o jovem Youssef (Ayoub Missioui) para auxiliar Halim, em mais uma tentativa de transmitir o conhecimento do ofício como forma de preservá-lo.
Trazendo muitas memórias de Trama Fantasma, de Paul Thomas Anderson, as relações de Halim e Mina e de Halim e Youssef se interligam por fatores muito humanos: o afeto, o desejo sexual e a morte. Mina é uma esposa que, tal como a Alma de Vicky Krieps em Trama Fantasma, é devota ao trabalho do marido. Não se importa em criticar o mau gosto ou as exigências do cliente. Importa o ofício, transmitido de pai para filho, importa o conhecimento representado nos cafetãs.
Youssef vem como aprendiz de Halim, e o permissivo de toques e gestos relativos ao próprio ofício – o manuseio dos instrumentos de costura, a delicadeza que precisa ser impressa nos dedos para um gesto correto, o movimento até sensual dos tecidos – ganham uma conotação erótica, perceptível sem exigir esforço do espectador.
A ideia de costurar como condutora da sutileza dos planos e closes de O Kaftan Azul é belíssima. A linha e a agulha habilmente manuseadas pelo artesão que é Halim conectam os personagens que dizem tanto pelo olhar quanto pelo toque. Com igual reserva, as insinuações da sexualidade de Halim são evidenciadas pelos sentidos da visão e do tato, o que é coerente diante do contexto político e social do Marrocos, onde a expressão sexual é censurada de forma tão impetuosa.
A morte, o outro conector dos personagens, se mostra através da personagem de Mina. Essa personagem maravilhosa, tão cúmplice do marido, enérgica e viva, é tanto motivo de separação como de união dos personagens. Se a princípio ela rejeita Youssef, logo essa relação de confiança entre ela e o marido também se estende ao jovem.
Intencionalmente ou não, Touzani acaba por fazer (ao menos para essa que vos escreve) uma gostosa homenagem à Faça Coisa Certa, de Spike Lee. Das varandas da casa de Mina e Halim é possível ver um personagem, quase um figurante, que encostado na parede ouve sempre a mesma música, e tal como Radio Raheem, irrita seus vizinhos. O próprio rádio é semelhante ao do personagem de Bill Nunn. Há melancolia e afeto na forma como o trio aprecia esse som persistente que incomoda aos demais, numa cena bonita de dança de ombros na varanda.
O drama talvez carregue O Kaftan Azul de forma um pouco excessiva em seu terceiro ato, mas na direção paciente de Touzani, o peso e sofrimento lento mostram-se coesos, porém nem por isso menos dolorosos. Num país que criminaliza a relação de duas pessoas do mesmo sexo, Maryam Touzani encontra um caminho que se mostra belo e gentil para representar o que significa ser LGBTQIA+ naquele lugar.
O Kaftan Azul será exibido na Mostra de Cinemas Africanos ainda no dia 13 de setembro, às 21h, no CineSesc (São Paulo), encerrando o circuito paulista.
A Mostra de Cinemas Africanos em Salvador acontecerá de 13 a 18 de setembro no Cine Glauber Rocha e na Saladeaete Cinema do Museu. Saiba mais sobre a programação aqui.