O Cinema Africano em 10 Filmes
O cinema autêntico africano é bastante tardio quando tomamos por referência a história da sétima arte e sua dita invenção. Antes dos anos 50, até se faziam alguns filmes no continente, todavia, não por africanos, mas sim, por europeus. Eram obras enviesadas pelo olhar estereotipado do colonizador, que representava o continente como uma unidade territorial e populacional exótica e selvagem, classificadas pelos estudiosos do cinema como colonialistas. Tal como a independência dos países africanos colonizados foi absurdamente tardia, assim também o foi a liberdade artística.
Havia, de fato, uma proibição imposta às colônias no que se referia à arte. Aos países colonizados pela França, por exemplo, havia o Decreto Laval, em 1934, que proibia a expressão artística pelo cinema. É triste, se considerarmos os franceses Irmãos Lumiére como inventores do cinema, que o mesmo país que foi berço da cinematografia tenha censurado essa mesma arte como forma de manutenção dos poderes coloniais.
Há, portanto, o cinema africano colonial e o cinema africano pós-colonial, esse último sim, nutrido pela autenticidade e pela cultura de realizadores africanos. Sendo a colonização um processo de extrema violência, que abalou estruturas políticas, sociais, econômicas e culturais pelos países onde passou, o cinema pós-colonial africano e de descolonização carrega de forma muito intensa os rastros da brutalidade europeia principalmente sobre o povo, que buscava retomar suas raízes identitárias, tão covardemente conturbadas.
O cinema africano é uma preciosidade que clama por um merecido reconhecimento e difusão. Num mundo que ainda vive em descolonização, que ainda se volta majoritariamente às visões estadunidenses e europeias, valorizar e exaltar o cinema africano é uma necessidade social e cultural. Por essa razão, propõe-se a difícil tarefa de selecionar 10 filmes fundamentais para conhecer as obras do continente do contexto pós-colonial ao contemporâneo, para facilitar esse primeiro passo tão importante, caso ele ainda não tenha sido dado. São eles, em ordem cronológica:
1. O Carroceiro | Dir. Ousmane Sembène | 1963 | Senegal
O Carroceiro é tido como o primeiro filme produzido por um país africano, e dirigido por um diretor do continente. Não à toa, traz uma atmosfera de desesperança, conformismo, falta de confiança, e até uma frieza pela necessidade de sobreviver – a bagunça feita pelos europeus.
Sembène, nesse curta-metragem de 20 minutos, nos insere nos contrastes de Dakar, capital do Senegal, do início dos anos 60, através da rotina de trabalho de um carroceiro, que transporta passageiros num bairro rural. Quando, a contragosto e por necessidade de subsistência, transporta um homem até o centro da cidade, onde é proibida a circulação de charretes, o carroceiro passa por uma série de adversidades que o fazem desacreditar e desanimar cada vez mais de sua própria situação.
Os pensamentos e desgostos do protagonista nos são expostos por uma narração em off muito direta e sincera. Sembène é dono de uma direção sofisticada e elegante, e contrapõe de forma bem definida em duotone as diferenças entre os espaços acessados pelo protagonista, o que exacerba seu desconforto onde não é bem-vindo.
Com um final sutilmente feminista, quando, após o desastroso e infrutífero dia do carroceiro, sua esposa é que parece que irá dar um jeito em tudo, o primeiro filme originalmente africano é uma pérola magnífica, um impressionante exemplo sobre um cinema genuíno e verdadeiro feito com poucos recursos e pouco tempo em tela.
2. A Negra De… | Dir. Ousmane Sembène | 1966 | Senegal
Em 59 minutos e focado em uma única personagem, o pioneiro do cinema africano e senegalês Ousmane Sembène consegue traduzir a opressão colonialista sofrida por um povo inteiro. A Negra De…, cujo título vem acompanhado de reticências para que o próprio espectador possa se questionar como completá-lo, é um filme de 1966 que passou pelo Festival de Cannes, e recebeu homenagens recentes nos festivais de Veneza, Locarno, Rotterdam, dentre tantos outros.
Acompanhamos, no primeiro longa-metragem de Sembène, a protagonista Diouana (Mbissine Thérèse Diop), uma jovem senegalesa que deixa sua terra natal, a cidade de Dakar, para trabalhar como governanta na costa francesa com seus patrões, que lhe prometem oportunidades e uma vida melhor no país europeu.
Muito embora seja estilisticamente comparado à nouvelle vague, o diretor senegalês é autêntico, apropriando-se da elegância já demonstrada em O Carroceiro, e retrata com a crueza necessária uma personagem silenciosa, mas que apresenta seus questionamentos através da narração em off, aqui também presente, e se vê muito longe das promessas que lhe foram feitas.
O filme aborda o fetichismo e a lógica racista da branquitude perante a personagem protagonista, que é explorada como se escrava fosse e nascesse para ser. Dotado de uma bela direção de arte que sai da movimentada e acolhedora Dakar para as enclausurantes paredes de um apartamento na costa francesa, e uma fotografia rebuscada, A Negra De… é um belíssimo e fundamental trabalho que se tornou um clássico do cinema africano
3. Sambizanga | Dir. Sarah Maldoror | 1972 | Angola
Sambizanga, de Sarah Maldoror, é um dos primeiros filmes africanos a serem dirigidos por uma mulher. Foi realizado, inclusive, numa Angola ainda sob o domínio português. É muito significativa e potente a resistência que esse filme emana simplesmente por existir: uma produção africana, feita por uma mulher, em pleno período colonial, e que fala justamente sobre a iminência da guerra da libertação (ou da independência).
O contexto pré-guerra é semelhante ao da ditadura brasileira em alguns aspectos. Integrantes da militância eram capturados e torturados pela polícia a mando do colonizador, acabando mortos ou desaparecidos. Sambizanga nos mostra uma Angola de 1961 através de Domingos Xavier (Domingos Oliveira), militante anticolonialista membro do Movimento Popular da Libertação da Angola, e principalmente pelo olhar de sua esposa Maria (Elisa Andrade), que após a captura do marido, parte em sua busca com o filho bebê nas costas.
Com o direcionamento do olhar para Maria, Sarah Maldoror nos faz conhecer a militância feminina inconsciente. Muito embora as mulheres do longa não sejam politizadas e nem integrem diretamente o Movimento Popular da Libertação da Angola, têm um posicionamento definido e formam uma rede de apoio tanto aos militantes como para si mesmas, numa demonstração impressionante de sororidade que é lindamente marcada pela diretora. É potente e belíssimo como em cada momento de fragilidade de Maria forma-se uma rede de mulheres eficientes que se prezam a não só acalentá-la e fortalecê-la, mas a cuidar de seu bebê quando ela não se mostra capaz de fazê-lo. Há uma compreensão silenciosa e uma força que faz brotar desse silêncio que torna a protagonista capaz de seguir sua jornada. Esse movimento coletivo é que sustenta a resiliência de Maria na luta.
Pioneiro em resistência anticolonial e no cinema africano e político feito por mulheres, Sambizanga é uma obra lindamente espantosa e de uma força tremenda que reverbera após experienciada.
Está acessível e integra o catálogo da Mubi.
4. Touki Bouki | Dir. Djibril Diop Mambéty | 1973 | Senegal
“Da França nada vem de bom. Nenhuma criança volta.”
Uma obra-prima e um clássico do cinema africano e mundial, Touki Bouki – A Viagem da Hiena ocupa a posição 66 dos eleitos melhores filmes de todos os tempos da Revista Sight and Sound em 2022. Inspirou muitas obras contemporâneas e extrapolou o mundo do cinema, sendo referenciado e reverenciado, inclusive, pelas estrelas da música Beyoncé e Jay Z, para divulgação da turnê conjunta On The Run (ainda que esse tenha sido um movimento que encontrou problemas de direitos autorais).
Mambéty constrói uma crítica forte de muitas camadas sobre o Senegal pós-colonial como um país bagunçado e oscilante entre apropriar-se novamente de sua cultura e o modo de vida europeu que invariavelmente começa a predominar na capital, confusão identitária que se forma principalmente nos mais jovens. Com a promessa de uma vida melhor no solo do colonizador, acompanhamos o casal Mory (Magaye Niang) e Anta (Mareme Niang) e seus esforços moralmente duvidosos para arrecadar dinheiro e ir para Paris.
Com planos de um luxo e criatividade cinematográfica memoráveis, além da câmera vertiginosa, Mambéty ironiza e zomba dos costumes e vestimentas europeus. Usa de uma montagem e trabalho de som experimental e inventivo que nos faz ouvir as ações antes que elas aconteçam em tela. Há uma onipresença espiritual e ancestral, ainda, que vai sempre permeando os protagonistas e colocando em dúvida suas decisões. O diretor brinca, ainda, com a ideia do sacrifício, intercalando imagens de animais abatidos, como em referência aos jovens que migram para a França.
Com uma atmosfera sempre estranha e um tanto insana, ao som repetitivo e persistente do refrão da canção Paris, Paris, Paris, de Josephine Baker, Mambéty já denunciava, de forma poética e muito criativa, a questão migratória que assola os países africanos até hoje. Touki Bouki – A Viagem da Hiena fez parte da seleção oficial do Festival de Cannes em 1973, onde recebeu o prêmio da crítica.
5. Ó, Sol | Dir. Med Hondo | 1973 | Mauritânia
Por Vinicius Costa
O prólogo de Ó, Sol é uma metáfora para tudo que se dará na sequência. De forma lúdica, o cineasta Med Hondo nos apresenta seu tema: a colonização do povo africano. Há um processo de batismo dos africanos que os coloca sob o jugo do colonizador. No início é como uma catequização, mas que logo se transforma em uma marcha militar. O colonizador que observa do topo recruta jovens do próprio povo oprimido para servirem de carrascos. A dominação é também mental, estabelecendo o ódio e a violência entre os nativos: uma “desconscientização” da luta.
Da Mauritânia vamos para a França, espaço onde poderia se vislumbrar uma vida menos pobre. A chamada “invasão negra” acontece. O povo colonizado quer seu espaço, mas não há hospitalidade para eles. Nem empregos. Nem moradia. Nem o mínimo de atenção governamental. Ó, Sol é um grito antirracista e decolonial que questiona toda uma estrutura de opressão que nem sempre é evidente, mas opera em pequenos gestos, em pequenos almoços familiares ou até mesmo no ato sexual. É um dos grandes filmes da vanguarda seiscentista que é colocado em segundo plano por ser negro. Faz parte de um dos movimentos de novos cinemas políticos e revolucionários.
6. Mossane | Dir. Safi Faye | 1996 | Senegal
Dirigido por Safi Faye, cineasta senegalense, Mossane é a personagem título vivida pela inebriante Magou Seck, uma garota de 14 anos cuja juventude é atravessada pela promessa de um casamento abastado que a acompanha desde criança. Apaixonada por um universitário, Mossane luta para impor sua voz e opinião contra o casório, enquanto não só seus pais, mas todo vilarejo tomam sua vontade como mera rebeldia.
A obra é bastante fluida e vai tornando-se mais obscura no seu decorrer. Faye nos embala na pretensa liberdade de Mossane, em cenas belas e muito livres, numa sociedade que ao mesmo tempo em que parece desprovida de muitos pudores ocidentais, como, por exemplo, o incômodo pela nudez dos seios femininos (aqui naturalizada, não sexualizada e responsável por uma cena lindíssima de troca de confidências entre amigas num banho) por outro lado prende-se em convenções sociais extremamente conservadoras como o casamento prometido. Há uma admiração de Faye por aquela comunidade, mas também uma forte crítica a esse conservadorismo.
As tradições religiosas e a ancestralidade que movem o microcosmo em torno de Mossane são transformados por Faye em personagens Os deuses ancestrais que a protegem e observam são personificados pela figura de três homens, que surgem em momentos importantes. Ali, o poder ancestral e da terra fornecem as soluções a muitos acontecimentos do vilarejo. Faye se utiliza de uma pontual narração musical que também é colocada como se a voz dos próprios deuses, um teatro grego cantando o destino de Mossane e como ela foi aprisionada por sua beleza.
7. A Pequena Vendedora de Sol | Dir. Djibril Diop Mambéty | 1999 | Senegal
Outra obra de Djibril Diop Mambéty de relevância, o curta-metragem A Pequena Vendedora de Sol foi seu último filme, que estreou postumamente em 1999 (o diretor faleceu em julho de 1998), parte do que seria o projeto Contos de Pessoas Comuns, dedicado às crianças de rua, lamentavelmente inacabado.
Trata-se de uma obra de estilo realista, que nos conta a história de Sili (Lissa Balera), uma menina que perambula de muletas por Dakar pedindo esmolas, que assim como os meninos vendedores de rua, começa a vender “sol”, desafiando essa regra masculina das ruas. O diretor imprime um belíssimo e sensível olhar sobre essas crianças, construindo uma protagonista apaixonante, ao mesmo tempo que critica fortemente a estrutura social que as aprisiona na pobreza e na carência de oportunidades.
A Pequena Vendedora de Sol está disponível no catálogo da FILMICCA.
8. Timbuktu | Dir. Abderrahmane Sissako | 2014 | Mauritânia
Timbuktu é uma obra bastante prestigiada. Fez sua estreia mundial no Festival de Cannes, concorreu à Palma de Ouro e levou para casa o Prêmio do Júri Ecumênico e o prêmio Chalais François. Foi, ainda, indicado ao Oscar de Melhor Filme Internacional em 2015, representando a Mauritânia. Sissako abre algumas feridas de abordagem bastante delicada em seu longa, ao situar o contexto da atuação do estado islâmico na pequena cidade-título e seus reflexos diretos na população, tomando, porém, o cuidado de não exatamente vilanizar os seres humanos por trás do grupo extremista.
O diretor permeia o vilarejo para demonstrar a ocupação jihadista que substitui o Estado após um golpe militar. No conservadorismo e rigidez extremos, pregados em nome da religião, a violência pune mulheres que não utilizam vestimenta adequada, que não cobrem o rosto. Pune futebol e música. Em paralelo a essa personagem-cidade, acompanhamos o conflito do pai de uma família nômade que acaba por se envolver num crime e passa pelo julgamento do Estado Islâmico.
Abderrahmane Sissako impressiona pelos cenários e paisagens dotados de uma beleza natural extrema ao mesmo tempo que abrigam o extremismo e a violência. Se utiliza muito da predominância do amarelo na fotografia para reforçar o aspecto já arenoso do local. Timbuktu é um filme intenso, belamente construído que busca o realismo e o humanismo como formas de denunciar o reflexo do extremismo nas pessoas que ele submete.
Timbuktu pode ser assistido no Prime Video.
9. Rafiki | Dir. Wanuri Kahiu | 2018 | Quênia
No Quênia, a homossexualidade é criminalizada. Rafiki é o cinema de resistência no contexto contemporâneo. O longa de Wanuri Kahiu, cuja exibição em seu próprio país foi proibida, chegou a ser a indicação para a categoria de Melhor Filme Internacional do Oscar, o que foi barrado pela censura.
Uma obra doce, vívida e ingênua, que transita com equilíbrio entre uma leveza adolescente e um tom de descoberta e a violência da LGBTfobia. Kahiu se apega numa narrativa à lá Romeu e Julieta para imprimir uma rivalidade política entre as famílias das protagonistas. O uso bem marcado e até florescente das cores constrói um ambiente que pulsa vida adolescente apaixonada, o que é muito bonito.
Kahiu não permite que a violência homofóbica seja a definição da vida dessas personagens. Apesar de tomar decisões em prol da segurança das garotas, a diretora permite esperança.
Rafiki pode ser assistido no Netflix.
10. Atlantique | Dir. Mati Diop | 2019 | Senegal
Atlantique consegue reunir muitos gêneros. Estreia de Mati Diop, sobrinha de Djibril Diop Mambéty (Touki Bouki – A Viagem da Hiena) na direção de longa-metragem, a ideia do filme vem despontando desde 2009, quando a diretora realizou um curta-metragem de mesmo nome tratando da imigração ilegal através da história de alguns amigos.
Aqui, o protagonismo é de Ada (Mame Bineta Sané), uma jovem prometida a um homem rico, mas apaixonada por Souleimane (Babacar Sylla), trabalhador de uma construtora que levanta um assustador prédio grandioso que parece totalmente deslocado naquele espaço. Diante da falta de pagamento de salários pela construtora, Souleimane e seus companheiros resolvem arriscar a travessia de barco para a Europa, encontrando sua tragédia.
Atlantique engana o espectador quando parece se interessar apenas pela história de amor e sofrimento de Ada. O longa, que carrega uma estranheza permanente reforçada por sua trilha sonora, muda o tom quando no casamento de Ada, alguém vê Souleimane, que já era tido como morto. A partir daí, Mati Diop dá um rumo fantasmagórico e policial ao longa, numa perseguição obcecada da polícia por Ada e de Ada por seu amor.
Para muito além do romance, a diretora aborda com sutileza a crueldade da imigração ilegal e homenageia de forma muito bonita as vítimas dessas travessias, lhes concedendo uma espécie de redenção. Para além, ainda, dos problemas imigratórios, Diop consegue trazer à tela o descumprimento de direitos trabalhistas pelos detentores dos meios de produção. O filme deu à Mati Diop o Grand Prix do Festival de Cannes 2019, que foi a primeira mulher negra a participar da competição principal.
Atlantique está disponível no catálogo da Netflix.