Christine: a máquina capitalista
Tendo em mãos o material escrito por Stephen King, mestre da literatura de terror e muito adaptado ao cinema, John Carpenter constrói um filme não apenas sobre um carro assassino, mas sobre o capitalismo. Então, antes de admirarmos os detalhes da bela Christine, é necessário que façamos algumas ponderações sobre o nosso sistema de vida.
Quando se fala em capitalismo não é difícil pensar no mercado financeiro, dinheiro, compras. A vida é pautada por um sistema no qual se troca um determinado tempo de trabalho por uma certa quantia em dinheiro; este é revertido na aquisição de bens para subsistência, algumas vezes lazer e, menos ainda, luxo. Há uma competição em que, teoricamente, aqueles que melhor souberem gerir suas economias terão maior sucesso e proveito do poder da moeda. Os que não alcançam esse privilégio são relegados a um status social abaixo, destinado às pessoas que deveriam trabalhar mais ou aprender a controlar melhor seu dinheiro. A divisão de classes, ou seja, a escassez de uns para abundância de outros, é inerente ao sistema capitalista. Não é novidade.
Mas não basta a divisão de classes, a desigualdade, o subdesenvolvimento, o colonialismo e tantos outros artifícios de dominação: é preciso o controle do inconsciente, do desejo. Para que a máquina funcione o processo de subjetivação não pode ser produtivo, mas reprodutivo. Ser alguém no mundo passa pela ideia de que é preciso estar inserido dentro de um sistema, fazer parte da máquina. Por isso o desejo sempre nos é colocado como aquilo que falta. A grande operação do capitalismo é a falta. Para existir é preciso possuir aquilo que ainda não se tem. Toda nossa potência criativa é automaticamente reprimida pela sociedade. Somos codificados. Temos desejos codificados.
Um filósofo e um psicanalista franceses, Gilles Deleuze e Felix Guattari respectivamente, pensaram sobre esse tema em uma série de livros (O Anti-Édipo e Mil Platôs). Com referências desde Espinosa, passando por Marx, Nietzsche até Freud, eles escrevem sobre o que chamam de axiomatização. Por mais que se tente criar linhas de fuga para o capitalismo, ele sempre retoma seu território com uma nova codificação que novamente nos inclui no mecanismo. Isso acontece de tal modo que o ser humano perde sua vontade de potência e a substitui por um desejo pobre, por uma imagem inconsciente que o docilizou e que determina o que é existir no mundo. A questão é: como se desterritorializar e encontrar uma saída do domínio mercadológico do pensamento? É exatamente essa dificuldade e esse processo de codificação capitalista que vemos no filme Christine – O Carro Assassino.
Agora o filme: o pretexto é absurdo e o subtítulo em português já prenuncia: um carro que mata. Mesmo quem não é familiarizado com a literatura de Stephen King logo na primeira cena percebe que essa adaptação cinematográfica nada tem a ver com um acidente automotivo ou algo do tipo, mas sim um Plymouth Fury 1958 vermelho possuído por uma força demoníaca, uma clássica narrativa do gênero terror. Seria muito fácil uma história assim cair em erro ou receber a alcunha de escapista ou “filme B”, não fosse o fato de o diretor John Carpenter assumir e subverter esse absurdo para um outro nível de discussão (algo já comum em obras do cineasta). Christine é sobre a axiomatização do capitalismo, assim como outras obras de John Carpenter: Eles Vivem é sobre a tomada de consciência do mecanismo ou Fuga de Nova York sobre as consequências e falhas do sistema.
Com poucos minutos de projeção a ideia está dada e o gênero estabelecido: uma linha de produção com vários Plymouths de cores claras contrastados com o vermelho gritante de Christine. A música, parte essencial na narrativa da personalidade do carro, enuncia o nascimento de algo naturalmente mau (“bad to the bone”). Christine abocanha os dedos de um inspetor de montagem. Pouco depois um operário negro (não por acaso) parece atraído pelo carro e se senta ao volante. Há um momento de transe na contemplação do objeto luxuoso produzido por ele e que, muito provavelmente, nunca teria o poder financeiro de adquiri-lo. Quando o trabalhador derruba cinzas de um charuto no banco é o suficiente para enraivecê-la. Sua primeira morte. Ela nasceu má até os ossos. Esse fato é muito significativo se pensarmos no livro que inspirou o filme: Carpenter escolhe por não dar a explicação sobrenatural à maldade de Christine, como fizera Stephen King. Não se trata do carro ser assassino ou assombrado, mas da possessão das pessoas por um “demônio materialista”. Possuir um carro significa se encaixar na demanda capitalista de uma vida pautada pelo material. Ser se transforma em sinônimo de ter no “american way of life”. É o desejo como falta.
Pulamos do nascimento de Christine nos anos 50 em Detroit para o final da década de 70 em uma cidade suburbana da Pensilvânia. Somos apresentados a Arnie Cunningham, arquétipo do adolescente nerd, e seu melhor amigo Dennis Guilder, arquétipo do jovem descolado jogador de futebol americano. Arnie é frustrado pela família e pelo fato de não se encaixar na forma de vida que “deveria” ter um adolescente da sua idade. A cultura de violência inerente ao capitalismo não está apenas no inconsciente processo de subjetivação e na operação do sistema, mas se reverbera no ato físico: Arnie é perseguido e sofre bullying na escola. Se forma um ciclo onde a vítima desterritorializada, fora dos padrões exigidos para ser, precisa achar um meio de se reterritorializar. É assim que Arnie se torna uma presa fácil para a máquina Christine. Ter um carro é a codificação do capitalismo para existir enquanto adolescente na high school estadunidense.
Arnie precisa ter para ser. Ao ver o carro à venda ele não pensa duas vezes em possuí-lo. É o mínimo de status que ele precisa. Christine parece ter perdido todo seu encanto e beleza de 20 anos atrás, está toda destruída e abandonada, mas ainda tem força para uma piscadela à vítima. É como um encantamento. Nesse momento ela vislumbra a possibilidade de reassumir seu papel como objeto de desejo. No esforço de alguns meses, o jovem expert em mecânica consegue reconstruir o carro. Eis a possessão (ou pacto?). Com seu Plymouth novinho em folha, agora ele se encaixa na demanda social. Carpenter é genial e sutil ao conferir uma personalidade e uma sensualidade a Christine ao longo do filme. São alguns ângulos de câmera, alguns movimentos, as músicas e os reflexos vistos através do carro que convencem o espectador de sua vivacidade.
Sua primeira aparição com o veículo reformado foi em um jogo de futebol no colégio. Todos param e observam sua chegada. Além da posse do carro, ele aparece namorando Leigh, a garota mais bonita da escola (outro arquétipo). Mais um fator representativo de que ele entrou no ciclo de violência é considerar a mulher como uma posse e um troféu perante a comunidade. É preciso exibir suas conquistas! Arnie foi axiomatizado. A partir daqui não se vê mais o estereótipo do adolescente nerd que usa óculos quebrados, mas uma montagem extrapolada do que seria a persona ideal. Ele não usa mais as roupas de cores frias, e sim o vermelho e o preto que marcavam símbolos de autoridade e popularidade no filme (seja pela família ou pelo amigo e, claro, o vermelho de Christine). É como se ele estivesse agora absorvido por uma imagem codificada do que seria existir dentro do seu contexto. Isso desperta ainda mais violência naqueles que se sentem ofendidos por essa nova figura de poder. O mesmo grupo que praticou bullying no primeiro dia de aula vai até a garagem onde o carro ficava guardado e o destroem. Em uma das cenas mais belas do cinema, Arnie pede para que Christine se mostre. É o momento de uma fusão erótica entre homem e objeto. Ela se reconstrói diante de seus olhos.
Logo, Christine e Arnie se transformam na mesma “pessoa”. A violência recebida se torna vingança nas “mãos” do carro. Um a um de seus inimigos são eliminados, tirados da concorrência. Nada pode entrar no caminho da relação amorosa entre Arnie e a máquina. É o seu momento de consolidação do status social idealizado. Ninguém é mais forte que ele agora que possui a maior máquina de todas, a assassina. Cada vez mais se vê a objetificação do humano, sua despersonalização e sua superficialidade materialista. Não há mais família, apenas rebeldia. Não há mais amizade e amor, apenas a violência machista. Todos os afetos agora são dedicados ao veículo. A subjetividade de Arnie são fragmentos de um sistema desumano.
Os filmes de John Carpenter nunca sobrepõem o conteúdo à forma. Veremos sempre sua assinatura autoral, seu estilo e referências, além da incrível capacidade para criar cenas (e músicas) inesquecíveis. Mas um exercício minucioso nos revela uma análise crítica e social muito mais profunda do que aparenta à superfície. Aqui não é diferente: Christine é um filme de gênero onde o cineasta explora o absurdo da narrativa com belíssimas imagens, e não deixa de ser uma crítica mordaz ao consumismo (algo mais evidente em Eles Vivem). A falta de personalidade, a violência, o tratamento entre os jovens, tudo isso só mostra o quanto a ideologia capitalista se insere na vida dos adolescentes. Talvez seja esse o momento mais sensível para ser tomado pelo mecanismo da vida reprodutiva e impotente. Arnie se torna fraco e sonha apenas em ser como seus próprios opressores. Existir, inconscientemente, se transforma em um mercado, as relações são produtos e as coisas precisam ser valorizadas para serem conquistadas por poucos no mito da meritocracia. Um carro se torna o exemplo máximo do objeto de desejo do jovem mentalmente fragilizado pelo sistema. Mas não se engane com os exageros do filme, essas relações estão nos pequenos atos e comportamentos, nas violências mais “sutis”, na banalização da vida.
Muito bom 👏👏
Obrigado pela leitura, meu parceiro!
excelente texto, parabéns!
Obrigado pela leitura =)
Sempre releio essa crítica! Ótimo texto!