Sem Coração | 2023
Alagoas, estado situado na região Nordeste do Brasil, que faz divisa com Pernambuco, Sergipe, Bahia e o Oceano Atlântico. É lá que a diretora alagoana Nara Normande e o pernambucano Tião, gravam Sem Coração, longa que é originário do curta homônimo de 2014 e que se passa no verão de 1996. Um filme solar e que traz consigo uma enorme carga afetiva e resgate de memórias da infância de Nara. Gravado com um elenco de atores iniciantes e locais, orientados e engrandecidos pela força da presença de Maeve Jinkings, que atua como Fátima, a mãe de uma das jovens personagens que dividem o protagonismo do filme.
A força maior do longa da dupla de diretores é a conexão genuína com o espaço e seus personagens, a familiaridade e naturalidade que há no desenvolvimento da narrativa. Acompanhamos o cotidiano de um grupo de pré-adolescentes que moram perto de uma vila de pescadores nos arredores da costa nordestina e suas novas descobertas diárias; dilemas familiares e processos de amadurecimento. Tamara (Maya de Vicq) é uma jovem que em breve partirá de sua casa no interior alagoano para estudar em Brasília, a personagem mostra uma complexa relação de amizade com os demais, e que, timidamente começa a reparar em uma menina solitária, filha de pescador, que circula pela região. Sem sabermos seu nome de batismo, a conhecemos como “Sem Coração” (Eduarda Samara, Bacurau, Raquel 1:1), apelido que fora recebido devido a uma cicatriz que ela carrega no peito.
A menina da cicatriz simboliza uma respeitosa e intensa ligação com o mar, com a praia, os peixes e com todo o entorno desse paraíso tropical, nos fazendo querer arrumar as malas e imediatamente viajar para lá. A personagem-título demora a aparecer em cena, aos poucos ficamos cada vez mais curiosos sobre ela, principalmente porque o foco inicial da narrativa está nas relações de Tamara com seus amigos e sua mãe. “Sem Coração” passa quase que como uma sombra que devagar se materializa em um forte elo de cumplicidade e desejo entre os demais. Ela pouco brinca com os meninos, está sempre concentrada em ajudar seu pai, mesmo que ele não exija isso dela. Pai que a criou sozinha desde pequena em sua humilde casa sustentada pela pescaria.
O filme transmite uma relação bastante carinhosa e extremamente respeitosa entre pai e filha (personagem interpretado pelo pai de Eduarda), que me fez lembrar de meu próprio pai, que viveu e sustentou por muitos anos a minha família com a pesca. As cenas simples de brincar na praia, catar ouriços do mar, apostar corrida por baixo d’água, despertaram lembranças afetivas minhas, mesmo que tenham sido vividas em outro estado, e sensações como as que pude experienciar assistindo a Retratos Fantasmas, de Kleber Mendonça Filho, por exemplo, nome que inclusive assina a produção do longa alagoano.
Logo no começo, há cenas subaquáticas lindíssimas e impressionantes, feitas com auxílio de finalização digital, onde a “Sem Coração” encara arraias de frente e parece conversar com elas. Mais adiante, temos a pesada presença de uma baleia que encalhou na praia, onde as meninas, como em uma conexão somente delas, conseguem ouvir o bater abafado do coração do animal e se lembrar de que, juntas, sonharam com ela na noite anterior. Há uma relação mística entre as meninas e a natureza, uma empatia e cuidado por todos os seres que a cercam.
Há uma cena em que “Sem Coração” vai, acompanhada do grupo de meninos, a uma grande piscina vazia de frente para a praia onde eles costumam brincar. Lá ela se reveza em uma experiência sexual um tanto desconfortante. Curiosamente a menina deixa-se ser usada por eles, sem expressão de dor ou prazer, as coisas que acontecem na piscina sem água parecem ser apenas uma troca mútua de descobertas. Existe uma cumplicidade e um respeito entre os jovens amigos em suas pequenas transgressões, e todas elas são mostradas com uma naturalidade arrebatadora.
A cidadezinha pesqueira, que descrevo visualmente como um paraíso tropical, é posta em contradição pela visão retrógrada, moralista e limitada de sua comunidade. Tamara está com medo de partir, mas sabe que precisa disso. Seu amigo que gosta de meninos é ridicularizado e agredido em uma festa pública, o que o faz comentar angustiado: “um dia eu vou embora daqui”. Há, entranhado a todo o frescor do cotidiano desses jovens, uma pesada sensação de ameaça e de violência, que mostra a relação conflitante entre os que vivem ali. A direção explora o tema queer com muito tato e expõe um problema estrutural genuinamente brasileiro. Sem Coração é um coming of age nordestino solar, sensorial e humano, que permite também, através de momentos lúdicos, nos fazer quase sentir as gotas das ondas no rosto, o vento balançando os cabelos e o calor nos pés descalços na areia.
Filme visto através de nossa cobertura do 25º Festival do Rio, acompanhe tudo aqui
Filme visto através de nossa cobertura da 47ª Mostra de Cinema de São Paulo, acompanhe tudo aqui