Folhas de Outono | 2023
O trabalho exige uma força brutal do ser humano, física e psicologicamente, e ocupa com predominância nossas vidas e momentos. Há quem encontre prazer em trabalhar, há quem encontre apenas desgaste. Há um abismo gigantesco entre ocupações que dão saúde e as que trazem doenças. Não é preciso discorrer muito para pensar na quantidade de trabalhadores que dedicam suas vidas à fábricas e corporações causadoras de moléstias e acidentes dos mais diversos, que preenchem os pulmões dos obreiros com as mais tóxicas substâncias. A troca, nem de longe, é justa, e jamais o será.
Folhas de Outono, novo longa de Aki Kaurismäki, vencedor do Prêmio do Júri do Festival de Cannes, extrai os mais doces sentimentos do ambiente agressivo e cruel do proletariado. O diretor finlandês nos lança na rotina laboriosa e repetitiva de Ansa (Alma Pöysti) e Holappa (Jussi Vatanen), que não se conhecem e vivem cada qual sua própria infelicidade e solidão. Os dois personagens sobrevivem com o salário de trabalhos precários, ela, caixa de supermercado e ele, em canteiros de obra, trabalhando e morando no mesmo local.
A Finlândia foi classificada, pelo sexto ano consecutivo, como o país mais feliz do mundo. Aki Kaurismäki nos mostra uma Finlândia bem distante da felicidade na vida de Ansa e Holappa. Parte-se da terra mais feliz para trazer uma realidade sem qualquer perspectiva. A Guerra da Ucrânia é uma assombração e o único assunto dos noticiários. Os personagens comem mal (quando comem) e trabalham mecanicamente. Holappa é alcóolatra, escondendo sua bebida numa caixa de energia da obra. A atmosfera de desesperança é constante.
Entretanto, o que parece soar denso, em Folhas de Outono equilibra-se numa comédia romântica muito carinhosa. O diretor retira da ausência de expressão e da infelicidade de seus taciturnos protagonistas situações e diálogos certeiros que atribuem a esse desalento uma leveza simples, na insistência da busca por, minimamente, alguns momentos mais vívidos. A solidão os arrasa, mas uma ida ao karaokê vai acender uma fagulha de esperança entre eles, uma urgência por conexão. A sorte e o azar vai uni-los e separá-los, da forma mais cinematográfica possível: um número de telefone perdido, desencontros e coincidências como só o Cinema pode proporcionar.
A forma como Aki Kaurismäki vai forjar e construir esse equilíbrio é através de uma rigorosa ambientação de contrastes unida ao cirúrgico trabalho de seus atores. O diretor nos lança pistas de um tempo futuro, próximo do nosso presente, mas carregada de elementos que parecem destoar dessa contemporaneidade. Há um calendário que aponta o ano de 2024, há o noticiário que atualiza sobre a Guerra da Ucrânia, mas que é reproduzido por um rádio estilo anos 60. Holappa entrega seu número de telefone à Ansa num papelzinho escrito à mão, não há celulares ali. O trabalho de direção de arte e figurino colaboram para que toques vintage permeiem os ambientes e personagens.
Os atores entregam estrategicamente poucas e milimétricas expressões. Não há qualquer entusiasmo em suas falas, as trocas são frias, num tom um tanto bressoniano. O humor é exato e bem pontuado, não há nada fora do lugar para mais ou para menos. O que pode soar como falta ou ausência, completa-se com uma específica piscadela, um discreto sorriso no canto do lábio, um olhar afetuoso, ou mesmo no único riso solto e aberto dado por Ansa quando brinca com a cachorrinha que acaba de adotar. O resultado dessa união é inocente e simplesmente delicioso.
Folhas de Outono é um abraço em meio ao pessimismo e a solidão. E Aki Kaurismäki não precisa de qualquer abraço encenado para que enlace o espectador: é na inexpressividade e na falta de perspectiva que ele toca. Pessoas (e animais), cansadas do abandono, se encontram e querem, na sua forma mais pura, serem felizes.
Filme visto através de nossa cobertura da 47ª Mostra de Cinema de São Paulo, acompanhe tudo aqui