Não Espere Muito do Fim do Mundo | 2023

Não Espere Muito do Fim do Mundo | 2023

Em 2021, quando as salas de cinema retomavam parcialmente suas atividades com limite de ocupação, espaçamento entre poltronas e uso obrigatório de máscaras, a 45ª Mostra de Cinema Internacional de São Paulo trazia Má Sorte No Sexo Ou Pornô Acidental, filme romeno do diretor Radu Jude. Em plenos tempos pandêmicos, assistir a uma obra tão contemporânea era novidade. Ver nas telas, com o humor e ironia tão típicos do diretor, pessoas usando máscaras abaixo do nariz e as tirando para falar, trazia uma sensação de unidade mundial causada pela Covid-19: em todo lugar do mundo, pessoas agem da mesma forma. Aquele se tornaria um dos melhores filmes assistidos por mim no festival.

Dois anos depois, Radu Jude volta à programação da Mostra SP, e assistir ao que ele traz de novo é praticamente uma obrigação após 2021. Também atual, Não Espere Muito do Fim do Mundo nos lança em nossa própria realidade pós-pandêmica, politicamente situada num mundo onde a extrema direita é fortalecida pelos discursos de ódio que rapidamente se espalham nas redes sociais sob inúmeras roupagens. Um mundo onde, após o isolamento social, há pressa e urgência para tudo, resultando em jornadas de trabalhos desumanas, extremas e mal remuneradas, normalizadas pelo capitalismo.

No fim do mundo de Radu Jude, trabalhos precarizados exigem 16 horas de jornada que findam, geralmente, num acidente de trabalho: uma realidade que muito nos é conhecida. Acompanhamos um dia da extensa jornada de trabalho de Angela (a excelente Ilinca Manolache), uma espécie de assistente de produção do audiovisual e motorista de uma produtora de comerciais. Sua missão é visitar e entrevistar ex-funcionários de uma grande corporação, todos afastados e acidentados, portadores de algum tipo específico de deficiência, para que gravem um pequeno vídeo de conscientização do uso de equipamentos de proteção individual e coletiva. Somente um felizardo será escolhido pela corporação para o comercial.

Em suas quase três horas de duração, o diretor nos situa à sua personagem dentro do carro que ela conduz. Entre uma visita e outra, ela pega longas estradas, enfrenta o caos do trânsito de Bucareste, se estressa, buzina, fala ao telefone, ouve música alta, come mal e toma inúmeras xícaras de café para se manter acordada. Angela parece estar sempre no limite, a ponto de dormir ao volante e sofrer também, irônica e tragicamente, ela um acidente de trabalho.

A sátira desse fim de mundo presente se completa com o passatempo de Angela. A mulher multitarefas alivia a crueldade de sua jornada fazendo vídeos onde ela interpreta o personagem Bobitza. Com um filtro masculino bizarro em seu rosto, ela incorpora um homem que profere discursos machistas e de ódio, fala palavrões o tempo todo, ironizando acontecimentos mundiais e de sua própria rotina, contando que as pessoas sejam inteligentes o suficiente para compreender sua ironia. Seus vídeos assustadoramente viralizam, e ela, num ciclo vicioso, os produz cada vez mais, como um escape.

O posicionamento de Angela como condutora desse carro na iminência de um acidente aproxima a protagonista de seus entrevistados. A exploração de sua força de trabalho, sob intenso cansaço e sonolência, nos faz esperar que ela tenha o mesmo destino dos trabalhadores acidentados. Radu Jude zomba e critica, pende entre o trágico e o cômico, ao fazer a personagem divagar sobre a quantidade de acidentes de veículos ocorridos numa determinada rodovia, todos sinalizados com uma cruz, enquanto dedica vários minutos de seu longa apenas para nos mostrar as inúmeras cruzes pelo caminho, coloca Angela, sonolenta e exausta, para transitar sobre essa rodovia.

Não Espere Muito do Fim do Mundo nos faz, ainda, visualizar tudo que é visto através de telas (de celulares, de câmeras ou de filmes) sob cores, e tudo que seria a vida real de Angela, sob preto e branco. É como se o vivo estivesse, de fato, nessas reproduções de imagens, e o real, duotone, fosse esse inevitável e frustrante fim do mundo.

Em paralelo à Angela-Bobitza, Radu Jude reproduz (e homenageia) cenas do filme romeno oitentista Angela Goes On, estrelado por Dorina Lazar, que integra também o elenco de Não Espere Muito do Fim do Mundo, onde acompanhamos a vida monótona de uma taxista, que trabalha por horas a fio e sofre discriminações de gênero. O contraste dos trânsitos percorridos pelas Angelas do filme homenageado e as diferenças de suas personalidades tornam a crítica do diretor mais eficaz.

Não Espere Muito do Fim do Mundo confirma e mantém a qualidade do longa anterior de Radu Jude, o colocando como referência importante do cinema europeu atual. Critica e ironiza na medida, nos faz rir de desespero, dentro de um carro, no caos do trânsito, a ponto de explodir.

Nota

Filme visto através de nossa cobertura da 47ª Mostra de Cinema de São Paulo, acompanhe tudo aqui

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