O Mal Não Existe | 2023

O Mal Não Existe | 2023

Sob um céu excessivamente branco, entrecortado por galhos de árvores, em um plano que o filma de baixo pra cima e em movimento contínuo, somos introduzidos ao pacato vilarejo no interior do Japão, onde reina a neve, enfeitando toda a mise en scène com a palidez do frio e a calmaria do equilíbrio natural daquele ambiente. Ryusuke Hamaguchi usa minimalismos e uma narrativa contemplativa e poética de um slow cinema para tratar de assuntos relacionados à interferência do homem na natureza, sua relação com ela e as consequências que podem advir, dependendo do teor dessa relação. 

Em O Mal Não Existe, Hamaguchi volta, depois do premiado Drive My Car de 2022, com um filme que se camufla numa obra aparentemente de cunho ambientalista, sobre a defesa de um vilarejo remoto e sagrado onde reside uma comunidade de imigrantes e é visado por uma grande empresa que parece querer passar por cima de tudo que lhes é importante para criar um camping de luxo no meio da natureza selvagem. Mas, na verdade, mostra a relação de como a natureza pode ser útil e infinitamente boa e generosa com aqueles que a respeitam e hostil, e de certa forma, transformadora, com os que ultrapassam seus limites. Mais do que isso, como o mal vem em formas de um capitalismo irresponsável, que está essencialmente engendrado na natureza humana infectada pelo mundo globalizado que entra em contraste com uma comunidade mais primitiva.

Há uma sutileza em expressar as dicotomias entre o bem e o mal no longa de Hamaguchi. Ainda nas primeiras cenas, acompanhamos Takumi (Hitoshi Omika), um faz tudo local, e sua pequena filha Hana (Ryo Nishikawa), distinguindo nomes de árvores enquanto caminham lado a lado. O pai passa para a  filha seu conhecimento e ela retribui com entusiasmadas respostas e curiosas observações sobre os rastros dos cervos que atravessaram o mesmo caminho que eles. Através da utilização consciente da água, que melhora a qualidade do preparo e faz crescer o comércio culinário do restaurante local, e dos trabalhos do dia a dia feitos com prazer, como coletar água fresca direto do riacho, cortar lenha, colher wasabi selvagem para incrementar os pratos, nesses pequenos e vagarosos atos, o diretor japonês nos pincela a integração do homem naquele ambiente frio, remoto e extremamente rico no interior do Japão. 

Tudo está em harmonia e Hamaguchi retrata como essa troca entre o homem e natureza é possível e depois como tudo se torna hostil e sombrio conforme aqueles personagens de fora vão entrando sem respeito algum em um ambiente que não significa nada para eles além de obter retorno financeiro. Uma dupla de agentes de talentos, camuflada em figuras corporativas para tratar dos interesses da empresa, é enviada ao vilarejo a fim de fazer uma reunião com os locais para discutir assuntos e uma possível redução do impacto da construção do que eles chamam de “Glamping”, um glamuroso local para acampamento turístico. Um homem especialista em retórica com uma visão bastante unilateral de sua missão de convencer o povoado dos benefícios do novo empreendimento e uma mulher que procura minimamente ouvir as questões morais que implicam o projeto, mas com uma postura bastante impotente e perdida em relação a oferecer soluções. Esse casal lidera o time que abre diálogo em uma reunião local, onde são massacrados com questões cruciais relativas a preservação do espaço e a preocupação com a poluição daquele ecossistema tão virgem. 

Em meio ao debate de fachada, onde as reclamações e apontamentos dos locais são completamente ignorados pelos agentes, temos a imersão desses personagens na realidade da qual agora, temporariamente, fazem parte. Guiados por Takumi eles passam a observar o cotidiano e o modo de vida daquela gente, causando um encantamento e um entusiasmo que beira a bizarrice, onde podemos ver o efeito devastador do contato com a vida mais primitiva no homem da cidade grande. O agente passa a enxergar Takume com admiração e fica obcecado por querer viver um pouco dessa vida simples e livre que ele vive. O Mal Não Existe reflete como o imperialismo corporativo quase robotiza as pessoas que nele vivem, parecendo haver um muro em seus olhos, muro que cai diante do mínimo contato com uma realidade mais crua e natural, mesmo que essa pessoa esteja ali com objetivos que vão por caminhos completamente opostos ao que a comunidade precisa.

Hamaguchi se utiliza de longos planos em câmera estática, onde somos direcionados a espelhos d’água que refletem as árvores secas pela geada, na percepção do fluxo de um rio que corre de cima para baixo e que na cadência da água, há também a preocupação com uma hierarquia de abastecimento. Enquanto o agente diz na reunião com seus chefes que “um pouco de poluição não vai mudar a água”, um senhor que é morador local explica a importância da preservação do topo da fonte para abastecer toda uma comunidade que vive mais abaixo. Assim como a observação de Takume sobre a trilha dos cervos que seria interrompida pela construção do Glamping, os agentes pensam que construir uma cerca em volta bastaria, o que na verdade ocasionaria em uma desapropriação de terras nativas daqueles animais, como foram desapropriados os povos mais primitivos pelos colonos que chegaram ali tempos atrás. O homem acaba sempre por impor violentamente sua presença, ora por necessidade, ora engenhosa e maleficamente disfarçada por contrapartidas supostamente benéficas.

O Mal Não Existe tem seu ato final enaltecido pela densidade da noite e do desespero em que entram os moradores em busca de Hana, a criança alegre e que acaba aprendendo a fazer muitas coisas sozinhas em decorrência da ausência do pai, que está sempre atarefado com seus serviços comunitários, e a perda da prematura de sua mãe. Hana desaparece e, por meio de uma força tarefa, uma busca é iniciada. As tomadas noturnas ganham espaço e também a intolerância nas relações humanas entre Takumi e os agentes.

O plano do céu branco que inicia o filme se repete, dessa vez em um intenso azul escuro entrecortado por galhos negros, indicando que o desequilíbrio tomou forma, abalando a harmonia a que fomos introduzidos inicialmente. “A chave de tudo é o equilíbrio, se você não enxerga isso, o equilíbrio se vai”. Hamaguchi desde o começo, quando o nome em lettering vai se formando por ambiguidades entre a existência do “mal” nas palavras que formam a frase-título, nos mostra que tudo está entrelaçado nessa reflexão, e que é nossa relação com o mundo e com o próximo que vai definir a intensidade com que ele se manifesta.

Nota

Filme visto através de nossa cobertura da 47ª Mostra de Cinema de São Paulo, acompanhe tudo aqui

Author

  • Jornalista carioca, estudou cinema na Academia Internacional de Cinema do Rio de Janeiro, certificada em roteiro pelo Instituto de Cinema de São Paulo. Ama cinema de horror e os grandes clássicos.

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