Segredos de um Escândalo | 2024

Segredos de um Escândalo | 2024

Diretor: Todd Haynes
Título Original: 
May December
Produtoras:
 Diamond Films, Gloria Sanchez Productions, Killer Films, MountainA, Taylor & Dodge
Produção: 
Natalie Portman, Christine Vachon, Will Ferrell, Pamela Koffler, Jessica Elbaum, Timothy Bird, Tyler W. Konney e mais.
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A carcaça das aparências que não mais conseguem se sustentar. As máscaras que balançam e estão à beira do precipício, mas que são seguradas por um esforço coletivo de uma família e de uma vizinhança bem representativa do sonho estadunidense. Gracie Athernon (Julianne Moore) e Joe Yoo (Charles Melton) são casados há 24 anos, pais de um casal de filhos adolescentes, vivem numa casa bonita de classe média alta, com uma piscina em construção, onde recebem os vizinhos para um churrasco de salsichas. Naquela vizinhança, o sol brilha com intensidade, tornando os dias mais felizes. Tudo seria muito digno de uma aceitável normalidade, uma almejada perfeição, não fosse um pequeno detalhe: há 24 anos, Joe possuía 12 anos, e Gracie, 36.

Em Segredos de um Escândalo, novo longa de Todd Haynes, o escândalo que esconde tantos mistérios é coisa do passado. O que assistimos é reflexo dele, ou, sua representação em muitas formas. Sob o olhar da atriz Elizabeth Berry (Natalie Portman), nos interessamos e queremos saber mais sobre aquelas pessoas cuja moralidade é tanto questionável quanto instigante. Elizabeth viverá Gracie em um filme independente, e é recebida pela família Athernon-Yoo para que possa conhecer melhor as nuances de sua personagem e representá-la da melhor forma nas telas do cinema. O jogo que se inicia a partir dessa aproximação é uma dança entre espelhos, oscilante entre a desconfiança e a atração, onde o temor e a curiosidade caminham lado a lado.

O que vemos, é, portanto, algo distante do alvoroço público causado pelo crime e pela imoralidade às quais Gracie foi condenada. O escândalo dá lugar a uma vida familiar entre quatro paredes. Haynes não nos deixa esquecer que a relação de Gracie e Joe nasceu da pedofilia. No Brasil, toda relação sexual mantida com menor de 14 anos é considerada estupro de vulnerável, independentemente do consentimento da vítima, uma vez que, nessa idade, ela é absolutamente incapaz e não possui o discernimento necessário para, dentre outras coisas, a proteção de seu próprio corpo.

Entretanto, tudo o que vemos deste período obscuro são revistas e notícias jornalísticas que rapidamente são colocadas em tela, mostrando Gracie, grávida e algemada, moldada numa face sempre angelical. A capacidade e sutileza de Julianne Moore de transitar entre uma duvidosa pureza e o controle absoluto de tudo é espantosa. Com uma voz infantilizada, ela acolhe e é acolhida, ao mesmo tempo em que observa e manipula com uma autoridade perspicaz. Há certa violência nessa sutileza, nas poucas palavras, nos olhares lançados pela personagem. “Essa já é a segunda cerveja”, ela diz à Joe num churrasco, ou “Você é diferente de mim, você é moderna”, diz à filha antes dela tirar o vestido de braços à mostra para escolher um que os oculte. Há uma submissão de todos à sua figura angelical, a criminosa que se assumiu vítima.

Quando não pelos recortes jornalísticos do passado, o revivemos pela presença de Elizabeth e pelos testemunhos de pessoas que ela busca para desvendar Gracie. O que leva uma mulher de 36 anos a se interessar por um garoto da 7ª série? E o que leva uma atriz a querer interpretar pessoas ruins? Seria Gracie uma pessoa ruim? Natalie Portman calcula com precisão cada passo de sua protagonista, que, sempre calma e interessada, circunda a família com um caderninho de anotações, gentil e invasiva, discreta e sedenta, copiando gestos de Gracie com uma fome de perfeição, num trabalho assombroso.

Através desse jogo de observação que, percebe-se, é mútuo entre essas mulheres, a obsessão pela reprodução do real que carrega uma estranheza constante, é tensionada por uma atração sexual crescente entre as personagens, e a vítima de fato, Joe. Charles Melton constrói um adulto absolutamente inseguro e manipulado, uma criança crescida, pai de dois adolescentes,  controlado por sua esposa, e que precisa fazer coisas às escondidas. Gagueja, não consegue formular frases sem pausá-las em demasia. Ao mesmo tempo, detém uma estranha maturidade que compreende e dá a proteção que Gracie demanda, é um homem inocente e sexy, que imediatamente magnetiza e aguça Elizabeth.

Julianne Moore e Natalie Portman contracenando brilhantemente.
May December, L to R: Julianne Moore as Gracie Atherton-Yoo with Natalie Portman as Elizabeth Berry. Cr. François Duhamel / Courtesy of Netflix

Muito embora dificilmente nos mostre o céu, o diretor ajuda a manter as aparências da família Athernon-Yoo com luzes solares bastante intensas, ambientes floridos com elementos naturais sempre presentes, mesmo nas tomadas internas. Roupas ou colchas floridas, flores em vasos que são manipuladas por Elizabeth e Gracie, as mariposas ameaçadas de extinção que Joe ajuda a criar. Tudo é ainda reforçado por uma fotografia granulada que tende a manter tons pastéis e amenos, em contraposição à tensão naturalmente existente entre as personagens.

A família que tenta ser o mais estadunidense e normal possível, sustentada pela suposta superação de traumas, finda por abalar-se pela presença de Elizabeth, revelando-se muito longe de esquecer seu passado, em que pese o tamanho esforço para manutenção de uma suposta harmonia por Gracie e todos ao seu redor. Habita ali, principalmente em Joe, um pleno medo de si mesmo, uma total ausência de autorreflexão sobre o que os levou até ali, uma infelicidade escondida e que parece sempre a ponto de ser revelada, se tornando maior que a manipulação que a oculta.

A dissimulação familiar diz muito também sobre o papel das atrizes e atores. Estaria Elizabeth buscando, de fato, o real, ou criando uma realidade a partir de sua representação? A forma como a atriz se diverte ao responder perguntas constrangedoras numa escola de ensino médio bem evidencia o quanto trata-se de uma arte que exige e se mantém pelo tesão, no sentido também sexual da palavra. Se tornar e construir o outro é, inevitavelmente, viver um pouco a vida do outro. Elizabeth parece se mostrar ávida por isso, por mais absurda que seja a história que ela pretende contar.

May December (título original da obra) é uma expressão usada para se referir à relação de pessoas com uma diferença de idade muito grande. Quando essa relação deixa de ser crime? Se, na maioridade da vítima ela deixa de ser ilícita, como fica a moralidade diante de uma sociedade tradicionalista? Todd Haynes alcança um equilíbrio certeiro entre despertar sentimentos duvidosos e manter uma incômoda e amedrontadora doçura, circundando tudo com uma tensão sexual que acende durante o longa até estourar e causar feridas sem volta, munido da genialidade que se mostrou o trio Portman-Moore-Melton.

Segredos de um Escândalo está nos cinemas.

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