La Cocina | 2024
Direção: Alonso Ruizpalacios
Com: Raúl Briones Carmona, Rooney Mara, Anna Diaz
País: México, EUA
Assistido no dia 15/02, no Cinemaxx.
Mostra: Competitiva
Não é novidade que muitos países ditos de primeiro mundo são muito dependentes de imigrantes para que o sistema do capital mantenha-se na roda. Contraditoriamente, porém não menos sintomático, tais países seguem uma lógica de repulsa aos estrangeiros. Essa repulsa vem manifestada na forma do ódio explícito, do racismo ou da xenofobia, e é também estrutural: conscientemente criam-se obstáculos que dificultam sobremaneira a vida desses seres humanos, já em sofrimento por precisarem deixar suas casas, famílias e terra natal.
Em La Cocina, o cenário quase único é, de fato, a cozinha do restaurante The Grill, na Times Square, em Nova Iorque. Por trás de sua fachada pomposa e turística, mantém-se uma cozinha movida a todo vapor por imigrantes ilegais. Em meio à rotina frenética, muitas coisas acontecem simultaneamente: dá-se falta de dinheiro no caixa, inicia-se uma investigação interna sobre um possível roubo; a jovem Estela (Anna Díaz) procura o cozinheiro Pedro (Raúl Briones Carmona) para um emprego, e este mantém uma relação amorosa com Julia (Rooney Mara), que está grávida e pretende fazer um aborto.
O material humano de Alonso Ruizpalacios é rico e complexo, mas o diretor não se limita a ele. Conduzindo o longa em preto e branco com pontuais cores em alguns momentos (o verde e o azul, quando presentes, são muito marcantes), a câmera mantém um ritmo que parece somente acelerar, deslizando entre baias de trabalho, alimentos, lixo e pessoas circulando sem parar, Ruizpalacios pode soar exibicionista ou excessivo. Entretanto, quando se propõe, para além das dinâmicas relacionais, fazer uma denúncia bastante clara, qualquer possível excesso se justifica e se mostra necessário.
The Grill é um grande restaurante, que possui uma grande cozinha, e, portanto, muitos trabalhadores. Via de consequência, muitos personagens. Americanos brancos, afro americanos, mexicanos, dominicanos, árabes, a cozinha habita um rol extenso de nacionalidades e raças. Sem se perder em tantos retratos, o cineasta consegue nos fazer criar laços e também repulsa por cada um deles, lidando com personalidades que são igualmente duvidosas e humanas. Chega ao absurdo para atingir em cheio o que quer: abordar a desumanidade do tratamento estadunidense aos imigrantes ilegais diariamente iludidos.
Se um dos trabalhadores se mostra desmotivado e causando problemas, o dever do patrão é reconhecer seu esforço prometendo-lhe a regularização de seus papeis. Se o caixa não fecha, o roubo é presumido, interrogatórios são realizados e a pressão tanto na jornada de trabalho como na vida íntima busca um culpado. Para manter esse desumano ritmo, o consumo de álcool é liberado na cozinha, aumentando a adrenalina e causando conflitos entre pessoas que não se toleram. Todos ali estão basicamente na mesma situação, mas as diferenças ainda gritam entre eles. Ruizpalacios não hesita em mostrar misoginia, machismo, assédio e xenofobia, mesmo entre os imigrantes, e o ambiente tóxico favorece o aparecimento de conflitos que envolvam tais preconceitos.
O machismo é explícito mesmo no casal protagonista, Pedro e Julia. Há cenas belíssimas de demonstração de afeto entre eles, especialmente quando ainda estamos sendo introduzidos aos personagens, ambos são filmados através de um aquário enquanto Julia, que é garçonete, limpa os vidros. É um momento doce e divertido que logo é quebrado. Pedro é apaixonado por Julia, mas também, violento, descontrolado, irritante e machista. Apesar de nunca diretamente impor nada à Julia, a decisão dela pelo aborto visivelmente o incomoda e o machuca, por atrapalhar seu sonho de ser pai.
Para que algumas reflexões sejam forçadas, por vezes um certo grau de violência direcionada é requerida. É o caso de “Faça a Coisa Certa”, de Spike Lee, ainda que cansemos de discutir o peso absurdamente desequilibrado entre a preservação da vida de uma pessoa e a integridade de uma pizzaria enquanto espaço físico. Para Lee a tensão crescente é personificada pelas altas temperaturas do verão, aqui o diretor, fazendo da caixa registradora de pedidos uma trilha sonora perturbadora, usa do pico do funcionamento da cozinha e do auge dos conflitos para causar o absurdo, o repugnante, a dupla possibilidade do alimento ser luxo ou lixo. La Cocina não é uma obra-prima como o filme de Spike Lee, e está longe de sê-la, mas a justificativa de seus meios segue uma linha semelhante.
Alonso Ruizpalacios trabalha o frenesi das grandes cozinhas e a exploração do trabalho imigrante pelos empresários estadunidenses num drama que escalona em proporções caóticas. Quando pensamos que não há mais para onde crescer, ele ainda o faz até o incômodo e o sujo. Em La Cocina os conflitos individuais não são superados, mas colocados num patamar apartado à vista do conflito coletivo maior, que iguala a todos.
Essa crítica faz parte da cobertura do 74º Festival Internacional de Cinema de Berlim, acompanhe aqui