Cidade; Campo | 2024
Juliana Rojas é, sem nenhuma dúvida, uma das maiores cineastas brasileiras. Construiu um cinema muito próprio, de uma estética limpa e precisa, docemente mórbido e reflexivo. A 74ª Berlinale, onde Cidade; Campo fez estreia na Mostra Encontros, reconheceu seu trabalho e lhe premiou como melhor diretora.
Cidade e campo. Esses são os distintos ambientes das histórias femininas que Juliana Rojas vem nos contar. Joana (Fernanda Vianna) é uma mulher que perdeu tudo após o rompimento de uma barragem em Minas Gerais, e vai morar em São Paulo com a irmã Tânia (Andrea Marquee) e o sobrinho-neto Jaime (Kalleb Oliveira). Por seu turno, Flávia (Mirella Façanha) sai da cidade e vai para o campo, juntamente com sua esposa, Mara (Bruna Linzmeyer) cuidar do sítio do pai que faleceu.
Joana, Tânia, Flávia e Mara são mulheres que buscam se reencontrar após sofrerem perdas, diferentes em muitos níveis de complexidade, mas tão próximas em profundidade. A morte natural de uma pessoa, a morte de tudo que um mar de lama pode causar. Rojas vem novamente equilibrar o drama, o horror e o musical, conectando essas histórias pelo céu e seu ponto avermelhado que, semelhante à uma estrela, unifica a cidade e o campo.
As tragédias e perdas pessoais de cada personagem são personificadas como pesadelos ou transe. Elas já estão ali, onipresentes, como fantasmas que se recusam a ir embora. O horror é inerente ao acontecimento.
Através dos pesadelos de Joana só imaginamos a lama, e vamos conhecendo aquilo que ela tinha de mais caro em sua vida, totalmente destruído. Em que pese todo seu sofrimento, aquela personagem que não tem outro caminho que não o de se adaptar à cidade, guarda sempre um sorriso no rosto, uma gentileza e um afeto que a tragédia não conseguiu apagar. Nos afetos, ela vai reencontrar suas forças. A cidade é onde o filme encontrará espaço para seu lado mais doce e se abrirá para o musical. É também no espaço urbano que, num pedaço minúsculo de horta, que Joana literalmente se aterrará, fincando os pés no símbolo daquilo que ela perdeu.
O campo será, além de um espaço de reestruturação, um lugar de autoconhecimento e ancestralidade., uma busca que vai permear uma atmosfera mais sombria. Juliana Rojas delineia muito bem a mudança do rumo de seu filme, nos afaga com o casal que quer viver fora dos escritórios de grandes empresas, e que a partir do luto passa a entrar numa espécie de sonho. Para o horror entrar, esse sonho precisa se transformar, novamente, em pesadelo.
Mirella Façanha e Bruna Linzmeyer, que protagonizam o lado “campo” do longa, constroem uma química tão absoluta, para atingir seu ápice no que foi certamente uma das mais tocantes cenas vistas da 74ª Berlinale. Flávia é uma mulher gorda, e a diretora dá voz, visibilidade e representatividade a esses corpos, para que sejam vistos com a sensualidade natural de um corpo que dá e recebe prazer. O sexo entre essas duas mulheres apaixonadas é construído com calma, não é mecânico ou forjado. Parte de um momento de relaxamento à luz da lua, as duas seminuas sobre o gramado, apreciando a noite, para adentrar a casa ao som de “Temporal de Amor”, clássico sertanejo brega da dupla Leandro e Leonardo. A canção subitamente é interrompida porque falha a energia elétrica. A delicadeza e o respeito com que a diretora direciona esses dois corpos, um gordo e negro e outro pequeno e branco, numa coreografia de toques e de busca um do outro, é de uma beleza imagética muito profunda. Não deveria ser única, mas o é enquanto o cinema insistir em padronizar padrões de beleza e relações.
Essa cena constitui um divisor. A chegada de uma terceira mulher ao campo vem carregada de estranhezas, espiritualidade, simbologias, que fazem com que o luto de alguma forma se integre ao autoconhecimento. Da ayahuasca ao que vem depois dela como cura, as personagens passam, individualmente, por buscas muito distintas.
Juliana Rojas trabalha conceitos de morte e vida desde a terra até o que há de mais espiritual. Na cidade e no campo, busca-se superar a morte. A beleza de tudo isso é que, mesmo após a morte, é necessário encarar o que vem depois. A diretora dá às suas personagens, tão cuidadosamente, o material necessário para essa superação, num filme que se conecta fortemente com o povo brasileiro.
Direção: Juliana Rojas
Com: Fernanda Vianna, Mirella Façanha, Bruna Linzmeyer, Kalleb Oliveira, Andrea Marquee
País: Brasil
Assistido no dia 18/02, no Cinemaxx
Mostra: Encontros