Como foi participar da Berlinale?

Como foi participar da Berlinale?

Esse acontecimento ainda parece um pouco surreal. Acredito que sair da Berlinale e já voltar para a rotina não tenha me dado tempo de processar e compreender a importância disso tudo. Eu via a possibilidade de participar de um festival internacional de cinema com muita distância, até então. Mas aconteceu. E em menos de um mês, tivemos uma viagem para planejar. Nós, um veículo independente, que não possui qualquer recurso ou ajuda financeira. Eu, que além de crítica, sou uma advogada autônoma que sequer pode se permitir tirar férias.

Com pouca antecedência, não havia muitas possibilidades de hospedagem que fossem minimamente acessíveis. Mas é incrível como toda a ajuda que recebemos corroborou para que a cobertura acontecesse. Um amigo que conhece um amigo que mora em Berlim, tem uma amiga que me acolheu por 4 dias, sem qualquer cobrança (não canso de agradecer a Mariana, o Baker e meu grande amigo Felipe, que fizeram parte desse arranjo). Os demais dias, fiquei hospedada num hotel Ibis há uns 15 minutos de transporte público do Berlinale Palast.

De fato, pensando a posteriori, os dias de Berlinale parecem suspensos no tempo. Nos perdemos nos dias da semana, sem saber dizer se é domingo ou terça-feira. Tudo que conheci de Berlim foram as estações de trem e metrô, os mercados, os cinemas e suas redondezas. Conheci uma parte do muro porque ficava próximo do Verti Music Hall, num lugar belíssimo e bastante turístico. Foram 8 dias de cobertura, do dia 15 (período noturno) ao 22/02 (período diurno), basicamente nesse ritmo (variável de um dia para o outro, claro): acordava às 7h para entrar na fila de reserva dos ingressos para imprensa, saia às 8h, pegava o trem/metrô, para a primeira sessão de imprensa do dia, às 9h, no Berlinale Palast. O café da manhã acontecia no percurso, ou rapidamente em algum café. Geralmente havia outra sessão ao meio-dia. À tarde, após às 14h, era necessário escolher entre coletivas de imprensa ou encaixe de outros filmes, além de tempo para almoço, café, banheiro e trabalho. À noite, aconteciam mais duas sessões de imprensa, ambas no Cinemaxx, às 19h e às 21h. Quando o último filme acabava, geralmente não havia mais nenhum lugar aberto para que se pudesse comer. “Jantava” batata-frita de rua, barrinha de cereal. Retornava para a “casa” por volta de meia noite, e ia dormir à 1h, 1h30 da manhã, porque ainda era necessário tomar banho e organizar a rotina do dia seguinte.

Uma refeição em Berlim custa no mínimo 10 euros. Nos mercados, havia refeições mais baratas, mas que nem sempre eram frescas. Cheguei a almoçar uma salada de macarrão de menos de 3 euros. Fiquei enjoada grande parte do dia, com um medo imenso de piora. Dramin e Coca-Cola (que eu nem tomo) ajudaram a melhorar, mas o baita sono que veio depois abalou.

Come-se mal, em geral, pela falta de tempo, recursos e variedade. Dormir menos de 6 horas por noite, assistir em média 4 filmes por dia e se alimentar de forma duvidosa faz o corpo, em determinado momento, sentir e te pedir para parar.

Num dia, eu fui dormir mais cedo. Acordei no meio da noite, tive insônia e crise de ansiedade, o que me fez perder o primeiro filme do dia seguinte. Noutro, eu estava numa pilha tão grande que às 1h da manhã eu estava escrevendo. Ainda, num dia em que o frio foi mais intenso, meu corpo ficou tão lento e cansado que eu parecia que ia adoecer. Algumas xícaras de café faziam melhorar, analgésicos também. Chega-se num ponto que o analgésico praticamente é um item obrigatório.

Aproveitava o pouco tempo disponível à tarde para escrever. Podia ser na sala de imprensa, um ambiente maravilhoso dentro do Berlinale Palast voltado para isso mesmo, onde eu me sentia bastante confortável, tranquila e feliz por poder estar ali. Era quando caía-se a ficha do lugar que eu estava ocupando naquele momento, com jornalistas e profissionais do mundo todo. Podia ser, ainda, em pé, tomando café, no Hyatt Hotel, onde aconteciam as coletivas de imprensa e os talentos dos filmes circulavam. Cruzei com Hong Sang-Soo, Kleber Mendonça Filho, com as protagonistas de Langue Étrangère, com Mati Diop. O café, na teoria, era de graça, mas você precisava pagar 2 euros para adquirir um copinho da primeira vez. Parece bobo, mas era muito acolhedor poder tomar café com biscoito.

Uma parte muitíssimo importante do Festival, não só para manter uma mínima sanidade, mas também para trocar ideias e compartilhar momentos, são as pessoas que conhecemos. Fui ao meu primeiro festival internacional crente de que ficaria sozinha, e saí de lá conhecendo pessoas incríveis, gentis e inspiradoras. Agradeço, nominalmente, àqueles que me acolheram e ajudaram a tornar o festival mais são e tranquilo: Ilana e Maria Catarina, do 16mm, Fabrício Duque, do Vertentes do Cinema, Márcio Sallem, do Cinema com Crítica, Bruno Carmelo, do Meio Amargo, Luiz Carlos Merten, Orlando Margarido, Wellington Almeida do Cinema 7 Arte.

Em coletivas de imprensa, tive a oportunidade de ver e ouvir Martin Scorsese, Kristen Stewart, Carey Mulligan, Adam Sandler, Paul Dano, Rose Glass, Sebastian Stan, Berénice Bejó, Gael Garcia Bernal, Renate Reinsve, Max Ritcher. Esse é outro pedacinho do festival que faz feliz, e que te faz compreender essas pessoas com muito mais simplicidade (e humanidade). É também a parte em que você percebe que, em coletivas de imprensa, muitos profissionais não hesitam em fazer perguntas vazias ou afrontosas. Foi muito marcante, para mim, enquanto ouvíamos Mati Diop falar sobre Dahomey, o melhor filme da Berlinale, que um jornalista tenha questionado a diretora sobre o suposto fato de ela não ser africana. Foi doloroso, como mulher negra, ver outra mulher negra franco-senegalesa precisar se afirmar para uma pessoa que sequer se importou em saber o mínimo antes de lhe fazer perguntas.

Aliás, ser uma das poucas pessoas negras nos espaços, tanto da Berlinale como de Berlim em si, é um tanto incômodo em muitos aspectos. No dia em que mais havia pessoas parecidas comigo, não passávamos de 10. Embora não tenha sofrido nenhum tipo de discriminação, olhares são perceptíveis, e o medo de relacionar-se nesse contexto é grande.

A Berlinale proporcionou uma das mais sensacionais experiências de minha vida: estar na presença de Martin Scorsese, por duas vezes, no mesmo dia. Tal fato me fez perder alguns filmes? Sim. E eu fiquei imensamente satisfeita com essa troca. Além da coletiva de imprensa, pude presenciar a entrega do Urso de Ouro Honorário a esse diretor tão pequeno em estatura e indescritivelmente gigante no Cinema. Uma cerimônia de premiação aberta ao público (a quem conseguiu reservar os ingressos), mas com a mesma pompa de um Oscar ou um Bafta da vida. Foi iniciada com uma apresentação ao vivo da trilha sonora de Assassinos da Lua das Flores. Passou por uma extensa apresentação da carreira do diretor, e por uma homenagem íntima feita por ninguém menos que Wim Wenders. Francesca Scorsese e Sharon Stone eram exemplos de pessoas presentes. Não encontro palavras que possam descrever decentemente o que senti. Mas chorei, senti, e muito (muito).

O saldo até o momento foi de 22 filmes assistidos, 13 críticas escritas e publicadas, 22 comentários breves sobre cada um dos filmes, 02 entrevistas (com Juliana Rojas e o elenco de Cidade; Campo) e muito conteúdo de rede social (stories, reels, carrossel). Até o momento porque ainda há muito conteúdo a ser publicado, a incluir as entrevistas. Talvez ainda leve um tempo para que essa cobertura realmente seja finalizada. De volta à rotina de trabalho (trabalho em período integral no ofício que me sustenta), é um tanto desesperador pensar ainda no tanto que há para fazer. Mas o desespero logo vira prazer, e principalmente, aprendizado. Penso que essa talvez seja a melhor palavra para definir toda essa experiência.

Agradeço aos meus companheiros do Coletivo Crítico por todo o amor, trabalho, paciência e imenso apoio: Mari, Vinicius, Eduardo, Betina e Daniel. Agradeço aos meus sócios por me permitirem a ausência de alguns dias, e principalmente à minha sócia Ágatha, que deu continuidade nos meus trabalhos. Agradeço à minha família pelo suporte e amor de sempre, pela paciência e pela compreensão de que eu sou uma pessoa que às vezes assume projetos demais (e está tudo bem). Agradeço ao meu marido, Luiz Henrique, por apoiar minhas loucuras, estar ao meu lado, e ser, muitas vezes, o meu segundo cérebro, quando eu não consigo mais dar conta. E agradeço, por fim, a todas as pessoas que apoiaram nossa cobertura na Berlinale, seja com doações (a campanha continua!), seja com compartilhamentos ou interagindo em nossas redes. Muito, muito obrigada!

Todas as críticas da cobertura da 74ª Berlinale podem ser lidas aqui.

Comentários sobre todos os filmes assistidos na 74ª Berlinale podem ser encontrados aqui.

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