Homem-Aranha: Através do Aranhaverso | 2023
Se entendemos que nossas ações no mundo não são pré-determinadas, não há destino, portanto, tudo que fazemos constrói e faz parte de uma rede de acontecimentos emaranhados pelo acaso. Cada escolha traz o próximo evento, e cada um deles se perpetua no tempo. Essa questão, mote do existencialismo, nos coloca o peso da responsabilidade de nossas escolhas, evidenciando o quanto ser livre é a nossa condenação. Muitas coisas podem decorrer da nossa liberdade; é o bater de asas de uma borboleta criando um furacão do outro lado do mundo. Esses problemas são suscitados em Homem-Aranha: Através do Aranhaverso, quando mergulhamos nos multiversos de escolhas de Miles Morales (Shameik Moore), um adolescente lidando com o peso da existência.
No primeiro filme da franquia, Homem-Aranha: No Aranhaverso (2018), temos o embrião desse dilema. Miles se descobre com poderes especiais que o transformam em um menino-aranha, sendo toda sua trajetória o reconhecimento de si nessa condição, transformando-se cada vez mais em um herói. Nessa tomada de consciência e amadurecimento, o personagem cria uma linha que foge daquela dada pelas estruturas racistas em nossa sociedade. Jovem negro, com descendência porto-riquenha, morador do Brooklyn, com todos dizendo que não seria capaz, no senso comum, já estaria relegado às margens sociais. Mas ele se permite romper com tudo isso e representar o “bom caminho”. Você não é aquilo que te impõem, porque suas escolhas te fazem, diria o existencialismo.
Nesta sequência o aranhaverso se expande. O tempo passou e Miles Morales se tornou o “bom amigo da vizinhança”, o Homem-Aranha que também tem que lidar com o final da high school, o ingresso em uma universidade e tudo o que isso significa em sua vida. Grandes poderes são grandes escolhas e, consequentemente, uma enorme responsabilidade. O roteiro de Através do Aranhaverso se encaixa tão bem com o filme anterior que realmente sentimos que estivemos um tempo afastados daquelas pessoas, mas que nos importamos com elas e entendemos o que representa estarem ali naquelas posições.
O primor técnico também já conhecido se repete aqui. A construção caótica das imagens nunca torna as cenas confusas, pelo contrário, fazem parte da narrativa, contam a história interna de seus personagens. Cada universo particular tem coesão, como quando vemos o prólogo apresentado por Gwen Stacy (Hailee Steinfeld) em um cenário borrado, obscuro, mas que ganha cores mais fortes com o abraço do pai. Os quartos dos dois aranhas principais falam muito sobre eles: a ansiedade de Miles e a rebeldia e força de Gwen. Adolescentes que escondem um segredo e com isso sentem a solidão daqueles que não podem se mostrar ao mundo, nem mesmo àqueles que mais amam.
A história se desenvolve a partir das consequências dos atos no primeiro filme. Uma questão que havia ficado em aberto retorna como o centro dessa sequência: por que Miles Morales foi picado por uma aranha mutante se já existia um Homem-Aranha em seu multiverso? Esse acontecimento quebra com o cânone temporal, fazendo com que todos os multiversos se alterem porque o curso natural não foi seguido. Confirmamos a ideia de que Miles caminha por linhas de fuga além da imposição histórica e social, o que acarreta em tudo o que vai mover o filme daqui para frente.
O novo contato de Miles com os multiversos e os vários aranhas se dá de forma acidental. É quando descobre a sociedade de aranhas organizada para restabelecer suas linhas temporais, liderada por Miguel O’Hara (Oscar Isaac), homem-aranha vampiro de uma dimensão futurista. Por mais que lhe seja negada a participação na batalha, o jovem se joga de cabeça nessa aventura, entendendo que suas escolhas só podem ser feitas por ele, carregando o peso de sua responsabilidade pelas consequências.
Esse arco dramático é muito bem construído, dando uma relevância muito maior ao papel de Gwen Stacy. A amizade que ela e Miles alimentam durante a projeção é de uma potência ímpar, fortalecendo a compreensão e aceitação do outro e de si por meio do amor verdadeiro. Mas nem por isso Através do Aranhaverso abandona o já típico bom humor dos filmes do icônico herói. A ansiedade de Miles lidando com seus problemas rende boas risadas e rimas com as obras anteriores, bem como a presença dos mais bizarros tipos de aranhas dos muitos multiversos presentes. Temos breves participações de um Dino-Aranha, um Gato-Aranha, um Lego-Aranha, além de um Cowboy-Aranha. Um espaço maior é ocupado por um Aranha-Punk (Daniel Kaluuya), por Pavitr Prabhakar (Karan Soni), um aranha indiano e Jessica Drew (Issa Rae), uma Mulher-Aranha grávida.
Mesmo que os filmes de super-heróis trabalhem com clichês já tão batidos na produção cinematográfica atual, Através do Aranhaverso consegue se destacar nesse nicho. A força das cenas de ação, orquestradas pela belíssima trilha sonora de Daniel Pemberton e organizadas pela montagem ágil de Michael Andrews, trazem um ritmo frenético que nunca se sobrepõe ao enredo; não são eventos aleatórios, mas muito bem pensados. Os diretores, Joaquim Dos Santos, Kemp Powers e Justin K. Thompson, têm controle absoluto sobre o que estão trabalhando, desde os elementos mais sutis da construção contextual e da representatividade, até o mais complexo dilema ético existencialista e utilitarista.
Homem-Aranha: Através do Aranhaverso cresceu e tem tudo para continuar crescendo, sendo apenas a primeira parte de uma aventura muito maior que surge como consequência do primeiro filme. Chamado enfaticamente de anomalia, Miles Morales não pretende assumir esse estigma social, colocando-se como autor de sua própria história. Esse tipo de cinema pouco, ou quase nada, chegou perto de atingir esse patamar conquistado pela franquia aranha, sendo uma das melhores obras de super-heróis, bem como uma das melhores do ano passado.