Furiosa: Uma Saga Mad Max | 2024

Furiosa: Uma Saga Mad Max | 2024

No universo apocalíptico de Miller, a busca frenética por qualquer sensação que traga alguma embriaguez é Cinema puro.

Combustível, bala, água e comida compõem um nicho de elementos valiosos e essenciais à sobrevivência no universo apocalíptico criado por George Miller. Nos filmes que precederam Furiosa: Uma Saga Mad Max (Mad Max 1, Mad Max 2: A Caçada Continua, Mad Max 3: Além da Cúpula do Trovão e Mad Max: Estrada da Fúria) esse mundo era menor e mais regional, um espaço limitado e inespecífico do deserto australiano, cujo verde contido em seus oásis vai gradativamente desaparecendo. A ausência do verde corresponde, de fato, à presença do caos.  Em Mad Max 1, o protagonista é um homem desumanizado após perder tudo, cujo combustível é uma necessidade mais emocional e psíquica de vingança, necessidade essa que vai perdendo seu espaço nos próximos longas para assumir uma urgência mais instintiva e básica, que é a de simplesmente sobreviver. 

Nesse caos desértico da saga Mad Max, onde os poderosos são aqueles que detém os meios de sobrevivência, inclui-se a religião ou algum tipo de crença como mais um elemento de dominação dos mais fracos, que compõem a mão de obra que fazem a roda girar. O culto, aqui, não é destinado a nenhuma entidade sobrenatural ou elevada: a religião é a máquina e o ser humano que pode detê-la em sua escala mais potente.

Assim, combustível, bala e alimento, que já são os motores dos filmes anteriores, em Furiosa: Uma Saga Mad Max são estruturados em indústrias e grandes linhas de produção, num universo de horizontes que encontram uma definição espacial muito mais ampla e delineada. O culto à máquina se torna mais forte, e qualquer esperança é minada pela insanidade brutal e pela busca frenética por qualquer sensação que traga alguma embriaguez. E o que é a busca pelo inebriante que não puro Cinema?

Em Mad Max: Estrada da Fúria, conhecemos Furiosa (lá interpretada por Charlize Theron) já adulta, no espaço de tempo de alguns dias, em rota de fuga com as noivas de Immortan Joe (Hugh Keays-Byrne), direcionando acertadamente a saga para o protagonismo feminino. Em Furiosa: Uma Saga Mad Max, o tempo narrativo é expandido, e nos aprofundamos na personagem-título desde sua infância (vivida por Alyla Browne), passando por sua juventude e história de luta pela sobrevivência (por Anya Taylor-Joy), até o ponto de partida do filme anterior. A pequena Furiosa é sequestrada pela gangue liderada por Dementus (Chris Hemsworth), mais uma figura insana de George Miller, que não por acaso veste uma capa heroica amarrada a um ursinho de pelúcia, numa composição à la Thor australiano, decadente, sujo, cruel e entediado, que vai servir tanto de vilão como alívio cômico. 

Miller abandona a estética azul-alaranjada marcante e a aceleração das ações de Estrada da Fúria, deixando claro, com isso, que estamos diante de um novo filme, desamarrado e independente de seu antecessor. Se aquele era um perfeito exemplar de filme de perseguição guiado pela loucura que lhe é tão característica, trabalhado para manter a adrenalina sempre em alta, com arcos dramáticos estratégicos e bem demarcados, Furiosa tem algo de mais primitivo através de uma personagem que é levada pelas situações e pessoas e tenta esquivar-se delas sem um propósito imediato muito específico, mas movida pelo objetivo maior de voltar para casa. É um filme com um propósito mais egoísta e individual, que mantém uma atmosfera cruel e desoladora muito presente. A perseguição está ali, a natureza de western também, mas o diretor insere respiros menos contemplativos e mais carregados por uma iminência de perigo.

Não há esperança alguma no universo Mad Max, disso sabemos. Há fios de afeto que custam a ser sustentados. Em Furiosa, o diretor brinca com a possibilidade de algo melhor, fornecendo um laço amoroso a uma protagonista fria, silenciosa e endurecida pelo sofrimento, para apenas aumentar sua dor, tirando dela qualquer chance de uma mínima felicidade naquele contexto. Sofrimento, para além das sensações físicas, é ter esperança. Anya Taylor-Joy e sua Furiosa de 30 linhas de fala é muito bem aproveitada por Miller, que ressalta a frieza adquirida pela personagem através de seus expressivos olhos, criando planos de pouca luz para fazer brilhar o olhar lacrimoso e significativo da atriz.

Ao personagem de Chris Hemsworth são dados alguns monólogos que, ao mesmo tempo que são amargamente cômicos, são importantes para destacar esse caráter até injusto sobre qualquer possibilidade de esperança naquele lugar. A ninguém se dá o direito à felicidade, sem exceção. Ninguém ali é totalmente bom e não há mocinhos. É justamente da ausência dessa esperança que surge a urgência da embriaguez. Se as sensações não são possibilitadas pelo bem, o serão pela exploração, pelo sangue, pela adrenalina a qualquer custo, pela dor, pelo sofrimento próprio e alheio, pela morte, e principalmente, pela máquina-deus, por sua velocidade e violência. A presença e o som constante do guitarrista deformado e louco de Immortan Joe em Estrada da Fúria, e que aqui rapidamente é perpassada, diz muito sobre essa necessidade incessante de motivar as sensações proporcionadas pela violência e mantê-las nas alturas, como um efeito alucinógeno que não pode parar.

Sobre a industrialização e a expansão dos espaços, ao passo que nos filmes anteriores apenas imaginávamos alguns cenários, como a Vila da Bala ou a Vila da Gasolina, e mesmo a Terra Verde de Furiosa, Miller aqui nos presenteia com sua estruturação física. Tudo tem um grau de continuidade da Cidadela de Immortan Joe (que em Furiosa é interpretado por Lachy Hulme), escravizada e miserável, já que por ele todos os meios de produção são dominados. A disputa acontece com o surgimento de Dementus, que como líder sem lar, quer demarcar seu território e se tornar também um dominador de povos e meios. O diretor, portanto, agora mapeia seu universo para além das estradas, o que possibilita também um realce ao povo, ainda uma massa única de pessoas, mas que também têm seus espaços explorados com mais especificidade. 

Esse povo, consequência da miséria, da fome, da sede e da doença, é mais sanguinário e mais canibalesco, tal como Furiosa: Uma Saga Mad Max se mostra mais cruel, mais físico e mais cru. Se algum dia tivemos bandidos e mocinhos no western, essa lógica de vingança fundamentada em alguma bondade já foi subvertida por Miller há muito tempo. Há vilões estabelecidos, o povo é vítima, mas todos se equiparam nessa luta instintiva pelo poder, pela sobrevivência e por algum objetivo, ainda que esse seja o sofrimento e a morte alheia, ainda que a crença seja depositada em máquinas e instrumentos para causar sensações nada nobres. Viva o Cinema inebriante e a poeira que toma conta das telas!

Nota:

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