Retrato de Um Certo Oriente | 2024
O retrato como registro de memória e fragmento de uma vida que ficou para trás
Cada pessoa guarda uma relação de alguma intimidade com a terra, o espaço territorial onde nasce e cresce, em menor ou maior grau. A decisão de partir, de deixar esse lugar que um dia foi um refúgio seguro e conhecido, pode ser muito dolorosa. Isso quando essa ainda é uma decisão a ser tomada e esse afastamento não é imposto por alguma circunstância que determine que a permanência seja ainda pior do que a dor de partir. Qualquer que seja o motivo, a terra que fica para trás é também uma história que se torna um passado distante. Lembremos sempre da diáspora africana, que findou por apagar qualquer vestígio de conexão de pessoas com suas origens, famílias e culturas.
Marcelo Gomes vai resgatar os mecanismos de registro da memória de vidas forçadamente abandonadas em Retrato de Um Certo Oriente, longa que coroou a abertura do 13º Olhar de Cinema. Inspirado no livro Relato de Um Certo Oriente, da autoria de Milton Hatoum, o lar a ser deixado é o Líbano de 1949, na iminência de uma guerra. Os irmãos Emilie (Wafa’a Celine Halawi) e Emir (Zakaria Kaakour) são dois jovens, católicos, cheios de vida, cujo medo de morrer no conflito que se irá se alastrar os faz partir para o Brasil em busca de uma vida melhor. No país natal, com muitas diferenças e conflitos religiosos (tema retratado de forma interessante em Arzé, que assistimos no Festival de Tribeca 2024) Emilie é uma freira retirada à força do convento pelo irmão, que já tomou todas as decisões acerca da mudança mudança por ela: vendeu a casa da família sem consultá-la e comprou passagens de navio para a América, numa típica lógica de dominação patriarcal.
A partida do navio já insere os personagens num contexto de alteridade. O choque da religião, dos costumes, da cultura, da língua, das características físicas regionais, são elementos que ativam, em cada um deles e de forma muito individual, uma espécie de curiosidade que vai se transformando para o acolhimento ou para a intolerância. É justamente esse abismo na percepção das divergências e do outro que vai definir seus relacionamentos, seus sentimentos e a forma de lidar com aquilo e aquele que é diferente.
A viagem entre Líbano e Brasil, no ambiente de clausura que é o navio, vai ser contraponto entre a imensidão de cada um desses países. Retrato de um Certo Oriente vai se passar quase inteiramente em navegações e lugares fechados, desde a cabine minúscula ao barco cheio de redes de descanso que leva até Manaus, a dita babel de línguas. Pouco vemos do mar ou do rio. Essa jornada da busca por melhora de vida, quando transformado em retrato e memória pelo diretor, recorda que o caminho também é a vida em si.
Gomes faz os recortes dessa travessia com o rigor e a formalidade da fotografia, do retrato. Usa do preto e branco e faz uso de lentes fotográficas antigas que dão um aspecto de documento ao longa, além de favorecer pontos de luz e contrastes que conferem muita beleza aos planos, construídos com cálculo para rememorar a ideia do registro da memória. A escolha pela ausência de sons e trilha sonora não diegéticos exigem um significado maior da imagem como potência. Até que Emilie e Emir cheguem ao Brasil, o rigor é ainda mais presente. O som muito intenso do maquinário do navio exacerba a dúvida de se chegar em segurança até o destino, e faz crescer a tensão que vai sendo construída entre os irmãos ante a libertação de Emilie das amarras, pois se permite flertar e se apaixonar por Omar (Charbel Kamel), um libanês muçulmano.
Essa quase obsessão pela formalidade faz esse primeiro trajeto da jornada carecer de uma certa vida. A imagem é potente, mas lhe falta a sensação. Nem mesmo a atuação de Wafa’a Celine Halawi, que é de uma doçura muito equilibrada à rebeldia, dá conta desse sentimento que não bate. Com a chegada ao Brasil, essa vida chega pelo encontro de culturas, e pela presença de Anastácia (Rosa Peixoto), a mulher indígena que imediatamente vai se conectar com Emilie, numa troca muito espontânea e bonita, quase que um elo espiritual entre elas. Com a amizade de Anastácia, a protagonista parece ir se consolidando como mulher que assume seus desejos, suas certezas e sua fome por Omar, em que pese a trágica e intolerante rivalidade do irmão para com seu amado.
É também com Anastácia que o filme vai adotar um tom mais espiritual, tendo em vista a abordagem das divergências religiosas entre os personagens, e a fusão ainda mais evidente diante da chegada em terras brasileiras. A cultura e religiosidade indígenas não vão fazer, necessariamente, uma oposição ao catolicismo ou ao islamismo dos imigrantes. O fazem em termos de demonstração das diversas manifestações de culto, mas agem como complemento. É belíssima a inserção, pelo diretor, num mesmo plano, de elementos das três religiosidades sendo manifestadas concomitantemente, de forma uniforme, destinada à divindades diversas, mas unidas num mesmo propósito.
Retrato de Um Certo Oriente é um documento, seja por seu interesse nas pessoas imigrantes que deixam suas vidas passadas para o início de um novo ciclo menos trágico, seja pelas escolhas estéticas que toma. O retrato está presente em cada enquadramento. Não só aquele registrado pela fotografia, mas também o captado pelo olhar e que se torna memória, fragmento de vida. Os olhares que se cruzam, tal como as culturas e religiões que se chocam, o fazem em convergência para uns, em divergência para outros.
Leia também nossa crítica sobre Paloma (2022), filme anterior de Marcelo Gomes.