A Flor do Buriti | 2024

A Flor do Buriti | 2024

 A resistência do povo indígena Krahô

Desde a invasão pelos portugueses, os povos indígenas brasileiros são colocados à prova todos os dias. Alguém bate à sua porta e diz: “prove que vive aqui ou tudo será meu”. Sua história sendo questionada, derrubada à machadadas, tiros e todo tipo de violência. São séculos e séculos assim. Os processos colonizatórios mudam e a opressão continua sempre renovando suas formas. Os Krahô, povoado do norte do Tocantins, é o exemplo de resistência em A Flor do Buriti, enfrentando, agora, as ameaças do agronegócio em tempos de bolsonarismo. Os diretores João Salaviza e Renée Nader Messora fazem um filme intimista guiado pela ancestralidade e pela força mística dos Krahô, revivendo suas memórias de dor e de luta.

A reminiscência acontece pelos sonhos de Jotàt, jovem indígena que tem seu sono atribulado por prenúncios e contatos ancestrais. Patpro, sua mãe, busca ajuda de Hyjnõ, seu sábio tio, para entender os males que podem estar acontecendo com a menina. São esses três personagens que acompanhamos na aldeia, o olhar inocente e curioso de Jotàt, cada vez mais sendo introduzida à cultura de seu povo; a resistência feminista de Patpro, que planeja representar a aldeia em uma manifestação em Brasília; e a serenidade de Hyjnõ, que entende o processo mágico de Jotàt e se transforma em mentor de sua jornada.

O caminho percorrido em A Flor do Buriti sempre tem como origem o próprio povo Krahô. Salaviza e Messora não fazem um documentário, por mais que o filme seja um registro da cultura de uma aldeia real, tomam os elementos míticos dos indígenas, seus cantos, suas danças e rituais, para fazer nascer uma “ficção do real”. O que vemos é o cotidiano dos Krahô, seus dilemas verdadeiros, porém, nunca filmados de forma alheia, como se fosse um olhar externo à sua vida. Pelo contrário, a fotografia, que também fica a cargo de Messora, busca sempre colocar a câmera diluída naquele meio, seguindo movimentos lentos e fluidos, enquadrando rostos adornados pela natureza ou pelo céu.

A noite tem uma função muito especial na composição dessas imagens, pois abrem espaço para o onírico. A fumaça e as fuligens da fogueira se misturam com o céu estrelado enquanto os indígenas cantam e dançam. É o mesmo céu noturno que ora está nos sonhos de Jotàt, ora nas cenas narradas por Hyjnõ, que contam sobre uma luta ancestral. Tudo contribui para a construção da espiritualidade das imagens, fazendo com que nenhum desses momentos sejam apenas registros históricos, já que trazem consigo a força invisível dos personagens.

É também durante a noite que o sono de Jotàt é incomodado por sonhos enigmáticos.  Com medo de que a filha possa estar doente, Patpro pede ao tio que descubra os motivos que “tiram a alma do corpo da menina”. Hyjnõ logo compreende o que acontece e tranquiliza a mãe dizendo que ela está bem, “apenas recebendo contato de seus ancestrais”. É como um ciclo de tomada de consciência, de descoberta de si como parte de algo muito maior. Então, Hyjnõ também se torna nosso mentor para nos conduzir ao entendimento do que realmente se passa com a jovem.

São duas histórias de dor e resistência despertadas por esse processo de Jotàt. A primeira é sobre o massacre aos Krahô ocorrido na década de 1940, quando fazendeiros atacaram à noite, assassinando 26 indígenas e incendiando suas cabanas. A segunda, quando eles foram usados como parte de um grupo militar durante a ditadura. Há um desequilíbrio entre os dois eventos, inclusive na dedicação estética dos diretores, que evidenciam muito mais o massacre, contado a partir da lenda de dois irmãos que se unem para fugir e sobreviver, do que a coação militar com os Krahô, algo que fica relegado a breves imagens que rimam com um comentário sobre o momento atual do Brasil governado por Bolsonaro.

Essa contextualização histórica nunca perde relação com a atualidade do filme. A Flor do Buriti consegue estabelecer uma ligação entre as lutas anteriores e a de agora, quando, ainda, sofrem com a demarcação de suas terras e a invasão de fazendeiros. Não à toa, os diretores filmam a participação de Hyjnõ e Patpro em uma manifestação de vários povos indígenas reivindicando seus direitos em frente a sede do governo federal, além de dedicarem tempo para exibir os discursos de lideranças do movimento, como os de Sonia Guajajara, atual ministra dos povos indígenas.

A ligação temporal e espiritual desses acontecimentos forma o enredo de A Flor do Buriti, sempre muito bem moldados pela forma poética com que o filme é conduzido. Jotàt é um elo de ancestralidade que desperta, uma jovem indígena que aprende sobre seu povo a partir do espírito dos antepassados, mas não só isso, aprende, também, sobre a luta histórica que observa em sua tribo. Em uma das cenas mais fortes e belas do filme, Jotàt assiste curiosamente o nascimento de um novo bebê na aldeia, como se naquele momento entendesse que também será sua função manter viva a força dos Krahô naquela criança.

A Flor do Buriti ganhou o prêmio do júri na mostra Um Certo Olhar no Festival Cannes em 2023.

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