Eami | 2022

Eami | 2022

A luta pela sobrevivência do povo Ayoreo através da oralidade e da busca por cura

O plano inicial construído por Paz Encina em Eami desperta uma certa ansiedade. A câmera imóvel nos mostra três ovos pequenos, ao que deduzimos pertencerem a algum tipo de pássaro. Percebemos a passagem acelerada do tempo através das condições de clima que vão atravessando aqueles zigotos: ventos ora mais fortes, ora mais suaves, a poeira do chão terroso que se levanta, o curso d’água ao fundo que se move, as cores do dia e da noite, o crepitar do fogo que avermelha tudo. Essas percepções são representadas tanto pela imagem quanto pelo som. A imobilidade da câmera não permite a visualização dos arredores, mas os sons nos dão a amplitude do que acontece para além. E o que acontece não nos parece bom. A pacificidade aparente de tudo vai dando lugar a esse sentimento ansioso que cresce a ponto de nos fazer aguardar algum tipo de acontecimento violento, da mesma forma como esperamos a eclosão desses ovos que nunca acontece.

O povo indígena Ayoreo vive numa região chamada de Chaco paraguaio, considerada a nível mundial o local que mais rapidamente vem sendo desmatado. Inevitavelmente, o desmatamento e a invasão da morada dos povos originários, um ato violento por si só, tem como consequência a expulsão igualmente brutal de pessoas. Eami, nome que significa “floresta” e “mundo” é uma criança que sobrevive ao subjugamento dos invasores, e que em rota de fuga, é conduzida por um personagem ancião (que ela chama de lagarto), como um guia, a deixar para trás seu lar, a floresta que já não é mais.

Esse lar que Eami e Lagarto precisam forçadamente abandonar, durante o longa, vai passando por um exercício de transformação em memória através do transe a que esses e demais personagens vão sendo induzidos pela oralidade dos anciãos e dos antepassados que habitam as forças da natureza. A diretora faz uso de voice-over para estabelecer essa conexão ancestral e espiritual entre espaço físico e o transcendental, uma voz que pertence a essas duas personagens fugitivas de gerações distintas, e também a outros que não vemos. São vozes que estão ao vento, que nunca concretizam um diálogo direto. A frontalidade é evitada por Paz Encina também no campo da imagem, de forma a direcionar nossa atenção sempre ao todo, e não ao indivíduo, exceto nos momentos em que nos leva ao transe, quando usa da aproximação do close nos rostos de pessoas sempre de olhos cerrados, como que apurando o sentido da audição para captar os sons que pairam no ar, ávidos para se tornarem memórias e continuar existindo.

Os Ayoreo chamam os invasores de “coñones”, significando aqueles que não compreendem o mundo. O choque vem não só com a violência do assalto das terras, mas também das culturas. A voice-over se refere sempre aos “coñones” como o mal, sendo que a evasiva para o modo de vida externo é vista também como uma morte. Perante esse mal, Eami perambula em busca da cura da alma que sofre com a tristeza, sendo guiada a deixá-la para trás, sem que isso signifique abandonar aqueles que morreram, amigos e parentes.

A diretora adota o formato híbrido da docuficção para salientar a urgência do clamor dos Ayoreo, transformando a voz over em depoimentos reais em alguns momentos, trazendo imagens documentais de invasões já ocorridas no passado. Fugindo das convenções tradicionais de tempo para ultrapassá-lo e torná-lo quase que irrelevante para a narrativa, Eami é um resgate desesperado pela ancestralidade que vemos ser assassinada e se perder, uma poesia dolorosa na voz infantil de uma criança-pássaro, que fala pelos ventos e com os ventos, que busca curar-se eternamente de feridas que parecem nunca serem capazes de sumir por completo, e que questiona: “Pode um coñone remover nosso espírito desse lugar?”

Eami venceu o Tiger Award no Festival de Cinema de Roterdã em 2022, e faz parte da Mostra Open Door Screenings do 77º Festival de Locarno.

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