A Hora do Show: Novo Milênio, Velho Racismo | 2000

A Hora do Show: Novo Milênio, Velho Racismo | 2000

A representação do negro no Cinema e na TV

À medida em que os movimentos de resistência e luta se fortalecem, as tecnologias de opressão também se atualizam na busca pela manutenção dos privilégios branco, masculino e heteronormativo. Toda “anomalia” aos olhos do sistema precisa ser absorvida, assimilada e diluída antes que se torne forte demais e altere a realidade que o favorece. Portanto, é do interesse dos detentores do poder que a energia de luta seja enfraquecida, que as identidades se fragmentem e se desconectem com a ancestralidade. Não há resistência se não se percebe a necessidade dela, se não se conhece a História.

Em 1989, quando lançou Faça a Coisa Certa, Spike Lee se consolidava como cineasta subversivo e provocador, já que ali trazia à tona essa estrutura diante da subjetividade do afro-americano. Tratando o Brooklyn como um microcosmo, Lee assinava sua arte como um manifesto pela urgência da conscientização da causa racial. Gritava ao mundo o “acorde”, famosa expressão presente em seus filmes em diferentes proporções. Colocava frente a frente os discursos de Martin Luther King e Malcolm X para evidenciar que era preciso repensar a luta que ambos tiveram. A forma sarcástica como o fez também se tornaria uma de suas marcas registradas: histórias que apresentam uma superfície amigável, mas que, no fundo, escondem a assustadora mensagem segregativa do sistema. Da caricatura de personagens como Mookie (o próprio Spike Lee) e Buggin’ Out (Giancarlo Esposito) somos lançados à tragédia final na abordagem policial com Radio Raheem (Bill Nunn). Tudo feito para aumentar a potência do “tapa na cara”, para ressaltar que as questões raciais não morreram, muito pelo contrário, estão nas ruas do Brooklyn, do Brasil, do mundo.

Passada uma década, certamente os mecanismos de opressão avançaram. Então, fez-se necessária uma intervenção de outra forma para o Cinema de Spike Lee, e assim o fez com A Hora do Show (2000). Os anos 90 foram muito produtivos para o cineasta, passando pelo humor ácido (ao melhor estilo Faça a Coisa Certa) e a análise complexa do relacionamento interracial em Febre da Selva (1991), pela biografia épica em Malcolm X (1992), a violência da criminalidade que assola as comunidades negras nos Estados Unidos em Irmãos de Sangue (1995), até o importante documentário sobre o atentado supremacista em uma igreja do Alabama Quatro Meninas – Uma História Real (1997). Com exceção de O Verão de Sam (1999), a temática racial sempre esteve presente nesse período, partindo de um contexto que demanda que seus personagens reajam a situações e dilemas oriundos do racismo estrutural. São pessoas que precisam perceber o seu entorno e como ele as afeta para então fazer surgir a consciência de luta.

Mesmo que a mensagem seja clara e que a questão do diretor quanto à condição dos negros nos Estados Unidos seja reforçada a cada filme, com a chegada do novo milênio uma nova imagem apaziguadora era pintada. Os anos 2000 trariam a esperança, a união entre os povos, os direitos civis garantidos para qualquer etnia, raça, credo, um mundo tecnológico disposto a compartilhar conhecimentos e comungar as facilidades do futuro que batia à porta. Ou, pelo menos, era esse o discurso mantido pelo poder vigente, mais uma tentativa de adormecimento da resistência. Isso é como uma afronta ao artista-ativista que é Spike Lee. Sua obra, enquanto arma antirracista, também se renova, explora e ressignifica as ferramentas de luta. Aí então o escracho elevado à enésima potência em A Hora do Show para evidenciar as estratégias que o outro lado usou e ainda usa para o controle das mentes e corpos: a mídia e o próprio Cinema enquanto construção da identidade do negro.

Seguindo uma montagem comum a filmografia de Lee, A Hora do Show apresenta dois discursos ou núcleos de personagens negros que, por fim, são levados ao mesmo destino forçado: a conscientização racial. Pierre Delacroix (Damon Wayans) trabalha como roteirista em uma grande empresa televisiva, o que o eleva a um status social pouco comum aos afro-americanos. Sua condição financeira é o que podemos chamar de transcendência racial, quando o próprio sistema concede a uma pessoa negra um espaço em seu território, uma representatividade falseada que a faz acreditar que está em uma posição de poder. O preço que Pierre precisa pagar por isso é se assumir como o “negro agradecido”, abrir mão de sua identidade para ser a ilustração da pseudo-inclusão, manter-se em silêncio em uma enorme mesa de roteiristas brancos enquanto seu chefe, Thomas Dunwitty (Michael Rapaport), o repreende por um atraso. Ele renega seu verdadeiro nome, Peerless, para adotar um afrancesado, assim como seu sotaque.

Do outro lado temos os amigos Manray (Savion Glover) e Womack (Tommy Davidson). O primeiro é um genial dançarino de sapateado, o segundo um exímio apresentador. Mas a eles (ainda) não foi concedida a transcendência: vivem no submundo, moram em um prédio ocupado e fazem shows nas ruas da cidade para poderem subsistir. São duas imagens essencialmente opostas: Pierre no luxo de seu apartamento no alto de um prédio; Manray e Womack tendo que fugir da polícia durante uma desocupação do lugar que habitavam. Esses dois pólos se encontram diariamente na calçada em frente a rede de televisão, mas não convergem como vítimas do racismo, já que Pierre não se vê assim. Ele só passa e diz que os talentosos amigos um dia terão seu espaço.

O que mistura essas duas linhas narrativas é um lapso de consciência racial que atinge Pierre Delacroix. Quando percebe o dilema que vive em seu trabalho, fragmentando sua identidade e se submetendo a diferentes tipos de humilhações cotidianas, ele resolve se propor ao absurdo para provocar sua demissão da empresa. A ideia é fazer um show tão racista que nunca seria aceito, tendo como referência os famosos shows de menestréis, entretenimento comumente utilizado para ridicularizar pessoas negras no século XIX. Nasce “Mantan: o Show do Milênio”, espetáculo de auditório com o sapateado de Manray, rebatizado como Mantan, e a apresentação de Womack, agora chamado de Sleep’n Eat (Come-e-dorme). O tempo seria o período escravocrata estadunidense, o cenário uma plantation de melancia, os personagens principais dois negros atrapalhados com suas peripécias. O roteirista se empolga no escracho e ainda propõe que todos os atores pintem seus rostos de preto, a blackface.

Mantan: o Show do Milênio

O plano de Pierre tem efeito reverso. A sátira não é compreendida como ele gostaria, sendo, ao invés de repelida, aceita com louvores pela chefia. Seria esse o programa que faltava para a família estadunidense, uma revolução televisiva, um tipo de humor ácido e provocador que traria novamente a audiência! Enquanto Manray e Womack precisam aceitar seus personagens para conseguirem sobreviver, Pierre volta a adormecer sua consciência racial em troca de reconhecimento e, ainda, de seu status social.

Mantan: o Show do Milênio é um sucesso. Por mais que as piadas racistas causem estranhamento em um primeiro momento, logo a plateia, em sua maioria branca, começa a aceitá-las de modo natural. A repercussão só aumenta, transformando Delacroix, Manray e Womack em estrelas. Os fãs usam máscaras de blackface e, no auge da loucura, pintam seus próprios rostos de preto para assistir ao show. As promessas que surgiram com o novo milênio, na verdade, trazem as mesmas representações do negro de séculos passados, como a dos shows de menestréis. A imagem que se perpetua na massa como identidade do afro-americano ainda é esta que vemos em A Hora do Show.

Em uma das cenas mais violentas do filme, a plateia ri do “espetáculo”.

Spike Lee formaliza seu filme como o próprio escracho idealizado por seu personagem principal, exagera nas atuações, cria caricaturas. Pierre com seu sotaque e trejeitos, Dunwitty como o branco que se acha mais negro que o negro, Manray que se transmuta em Mantan para aproveitar o dinheiro que ganha, o grupo de rappers revoltados liderados por Big Blak Afrika (Mos Def), a plateia que se vê autorizada a rir daquilo que é mais repulsivo. O cineasta faz com que o espectador seja jogado nas entranhas da mídia para repensar a imagem que foi dada aos negros, para trazer à tona que o poder midiático é branco, que a indústria cultural está aí para criar a subjetividade do negro pelo viés do branco. É aqui que podemos compartilhar as palavras de W. E. B. Du Bois (2021, p. 23), um dos maiores pensadores do movimento negro da História, que afirma que ser negro é

uma sensação peculiar, essa consciência dual, essa experiência de sempre enxergar a si mesmo pelos olhos dos outros, de medir a própria alma pela régua de um mundo que se diverte ao encará-lo com desprezo e pena.

Isto é algo que também apontava o psiquiatra martinicano Frantz Fanon (2008) ao escrever que a ideologia estigmatiza e mistifica a identidade negra a tal ponto que a subjetividade do negro se construa como objeto do olhar do branco. Portanto, com o avanço das tecnologias, da mídia e da internet, as ferramentas de opressão racistas se tornam mais sutis, mas não menos violentas. A tentativa de suavização também faz parte dessa estratégia do novo milênio. Spike Lee tem consciência disso e, novamente, precisa ser violento em sua mensagem para que ela seja recebida com o impacto necessário.

Quem determina o que é ser negro, se não o imaginário das massas manipuladas pelo Cinema e pela TV? As imagens exageradas em A Hora do Show evidenciam a insustentabilidade de se pensar os processos de subjetivação separados da mídia na atualidade. Isso ainda considerando que o filme foi produzido no ano 2000, não levando em conta a explosão das redes sociais e seu impacto em nosso tempo. Spike Lee ainda é o mesmo ativista e provocador de Faça a Coisa Certa, mas aqui elevado a um nível que somente sua genialidade é capaz.

A Hora do Show, assim como no filme de 1989, termina com corpos negros assassinados. Vimos a trajetória de personagens que lidaram com as forças do sistema, foram cooptados, silenciaram, depois despertaram, mas tarde demais. A violência das imagens de Pierre e Manray alvejados e ensanguentados nos é aproximada da violência da plateia de rostos pintados que ri das caricaturas de Mantan e Sleep’n Eat. Para nós é impossível afirmar qual das cenas é mais brutal, visto que a morte de afro-americanos não está desvinculada do discurso que reproduzimos enquanto sociedade. Lee quer que, diferente de seus personagens, possamos acordar antes que os corpos caiam, para olharmos para nossas mãos e ver que o sangue também está ali.

Nota:

Referências:
DU BOIS, W. E. B. As almas do povo negro. Tradução de Alexandre Boide. Ilustração de Luciano Feijão. Prefácio de Silvio Luiz de Almeida. São Paulo: Veneta, 2021.
FANON, Frantz. Peles negras, máscaras brancas. Tradução de Renato da Silveira. 3. ed. Salvador: EDUFBA, 2008.

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