Abril | 2024
O corpo feminino como algo coletivo, como um elemento de posse, que percorre mãos, opiniões e imposições de regras masculinas. A decisão da diretora Dea Kulumbegashvili de iniciar Abril com uma alongada e incômoda cena de parto, no tempo de sua duração, a vagina da mulher se abrindo para o surgimento da criança que nasce em meio à sangue e material de placenta, puxada por mãos diversas e estranhas, a mãe sem rosto como objeto de dar à luz, dita o caminho para o tratamento das mulheres do filme. Esse parto em específico, conduzido pela obstetra Nina (Ia Sukhitashvili), a mais experiente de uma maternidade situada no leste da Geórgia, encontra um final trágico. Não vemos a mãe enlutada buscar a reparação de seus direitos junto ao hospital, mas sim, o pai, que exigirá a punição da médica responsável, em que pese essa tenha feito tudo que lhe cabia para salvar a criança. Encurralada, pressionada e julgada pelos responsáveis do hospital e pela figura paterna ali presente, todos homens, o motivo do direcionamento punitivo será dado na mesma oportunidade: Nina ajuda mulheres e meninas a realizar abortos inautorizados nas aldeias da zona rural.
Abril, que integra a competição novos diretores da 48ª Mostra Internacional de São Paulo e foi vencedor do prêmio especial do júri no Festival de Veneza, por sua crueza, é desconfortável e bastante denso. O filme tenta modular o tempo dos acontecimentos ao tempo de suas durações reais, e a diretora os dilui para nos mostrar a rotina e os dilemas de Nina. A frieza aparente da personagem demonstra-se por suas poucas palavras, pelas raras aproximações da câmera de suas expressões faciais, endurecidas quando em close-up, porém é contraposta por metáforas imagéticas que personificam o estado psicológico e até espiritual da personagem em uma criatura de andar lento, deformada, como um feto adulto em sofrimento, e pela estranheza de algumas atitudes da personagem que ocorrem extracampo, mantendo o distanciamento-a de nós, mas suficientes para que entendamos suas carências.
A diretora não nos irá aproximar, de fato, de nenhuma das personagens femininas, evitando que qualquer laço emocional seja vinculado se não por aquilo que ela nos mostra de forma crua. Se concentra nos corpos femininos que são manipulados e nas consequências das violências a que são submetidos. O próprio parto é, de certa forma, muito brutal, ainda que seja natural do corpo feminino que dá a luz, mas a visão que Kulumbegashvili traz sobre ele explicita o quanto ele dolorosamente se modifica e sofre. Do aborto, realizado sob uma mesa de cozinha, vemos somente o corpo nu da mulher que se contorce conforme é invadido. A cineasta vai, ainda, concentrar muitos minutos de Abril naquele que é o causador de toda essa violência: o pênis masculino, aqui, não ereto.
As ações prolongadas e o silêncio do filme, que são importantes para que compreendamos essa frieza narrativa, perdem seu propósito em muitos momentos, soando como acréscimos que parecem somente preencher um vazio, poesia forçada inserida para amarrar algo que sequer precisava ser amarrado. Abril desafia a imagem e a linguagem em seu estranhamento silencioso, mas cede às explicações quando encontra seu final, o que mostra-se um tanto contraditório para um filme que se apega à uma não explicitude das expressões.
Abril é impactante quando direto e cru na imagem, mas quando é metafórico ou cede ao que precisa ser dito, só protela uma lentidão que já lhe é inerente, e que o arrasta ao ponto do desinteressante, do sentido que se esvazia.