Carrie, A Estranha | Horror da Semana

Carrie, A Estranha | Horror da Semana

Os dilemas do corpo e a fúria da mente

O corpo feminino pode ser visto de muitas formas, para quem o olha de fora, ou para o indivíduo que vive nele. Para Carrie, protagonista interpretada por Sissy Spacek, no longa de Brian De Palma, diretor conhecido por seu maneirismo e excessos estilísticos, pode ser algo pavorosamente desconhecido. A menina, que vive uma dinâmica bastante complicada e solitária com sua mãe devota religiosa, em uma casa escura, cercada por imagens sacras e um discurso intimidador acerca de sua liberdade sexual, faz de sua relação com seu corpo algo bastante aterrorizante.

De Palma abre seu filme com um tom quase angelical, lúdico e bastante envolvente, como um jardim do Éden vaporizado pela bruma que exala do chuveiro quente onde as meninas da escola de Carrie tomam banho. Os corpos nus vão e vêm em meio à névoa como em um balé, onde as moças se banham, riem e correm pelo amplo ambiente dos chuveiros. Por um instante a câmera foca em Carrie, que ensaboa seu colo, o quadril, as pernas, e, por um deslize, deixa cair no chão seu sabonete. É bem pontuada a interrupção da harmonia de seu ritual de banho, convertendo o momento prazeroso em um desconfortável ataque de pânico, assim que ela percebe que por entre suas pernas escorre sangue. O vermelho do sangue toma mais destaque em suas mãos e ela, sem entender, corre aos berros em direção às outras meninas.

O incidente que a leva à diretoria e que também simboliza o aflorar da puberdade e um sinal de amadurecimento, é encarado como algo monstruoso por Carrie, que nunca teve instruções de sua mãe e que desconhece o funcionamento de seu próprio corpo. Todos à sua volta tornam seu momento mais miserável, a ridicularizando, com uma avalanche de risos e deboches e uma chuva de absorventes sendo arremessados contra a menina nua, acuada e exposta. 

Daí por diante, De Palma nos apresenta uma realidade mais aproximada das angústias que a jovem vive em seu cotidiano escolar. Ao chegar na sala do diretor, que erra constantemente seu nome sem dar a mínima importância a correção, indica a invisibilidade e a mediocridade com que Carrie é tratada na escola. Um grande triunfo na construção narrativa é a progressão do horror por meio de artifícios de terrores muito reais, como o bullying e o assédio moral. A protagonista é bombardeada por isso e mesmo assim, tenta seguir pacificamente sua vida. 

O longa se divide entre a realidade de Carrie no colégio, no ambiente onde seu único amparo é o de uma professora que tenta a ajudar e a defende dos maus tratos; e em casa, com sua mãe, uma criatura extremamente amargurada por ter sido deixada pelo marido e uma fanática religiosa que impõe  sua crença violentamente à filha.  O misticismo no filme cresce quando estamos no ambiente da casa de Carrie, e a fotografia que não economiza em nos mostrar o quão importante e opressora é a presença da religião cristã na residência e na vida de mãe e filha. O jogo de culpa e medo são constantes. As imagens de Cristo crucificado aparecem pelos cantos dos quadros em muitas cenas, em segundo plano, se esgueirando, em reflexos de espelho, como uma onipresença que julga e que pode punir.  

A grande punição, porém, vem da mãe de Carrie, que ao ser contrariada, tranca a filha em um quartinho de oração, junto a imagem de um inri cristo bastante perturbadora. A revolta de Carrie e sua ira pelas injúrias que sofre sempre calada, a faz desenvolver habilidades sobrenaturais e telecinéticas que ela aos poucos começa a explorar e, até mesmo, aceitar. Carrie passa a  mover coisas com o poder da mente, e, inquieta, materializa sua dor em objetos, assumindo uma força física que não a assusta, mas fortalece.

Uma das colegas de Carrie, arrependida das maldades feitas a ela, pede ao namorado, o cara mais charmoso da turma, que a leve ao baile de formatura, um ato bondoso que poderia curar as dores da menina que vivia afastada de todos e não tinha expectativas de ir acompanhada a tal evento. No baile, uma das cenas mais bonitas e envolventes no longa de De Palma acontece quando ele dedica tempo a recortar o momento a dois, entre Carrie e seu par. A menina que começou o filme amedrontada com a própria menstruação, passa batom nos lábios,  se sente bonita pela primeira vez e é bajulada pelo rapaz que admira. O diretor faz desse momento algo realmente especial, quase mágico, como um conto de fadas

No meio do baile, o casal de jovens dança rodopiando e a câmera em torno deles não faz diferente, gira sem parar, enquanto o casal gira também. É um momento hipnótico, excitante, sufocante. Podemos ver, de um ângulo filmado em contra-plongée (de baixo para cima), um céu de estrelas prateadas feitas de glitter, o fundo em iluminação magenta, uma mise en scene de filme de romance adolescante, nos cativando com o conforto dos rostos quase colados em uma alegria contagiante, até que tudo gradativamente mude de tom. 

Quando o tom muda, ele muda profundamente. Antes, o ponto de obscuridade do longa estava fixado no lar opressor de Carrie, mas quando ela percebe que tudo aquilo não passou de mais um motivo para ser ridicularizada em público, nada no mundo poderia ser pior, ativando seus gatilhos mentais e o baile se transfigura em um verdadeiro inferno sangrento. No auge de sua ira e de sua desilusão, a menina faz com que todos ali paguem caro por seu sofrimento e humilhação. É triste ver o sonho dela desmoronar, mas é revigorante ver Carrie achar seu modo macabro de conseguir redenção

Todos acabam sofrendo as consequências de sua fúria, inclusive ela mesma, que revira completamente os cantos do salão do baile, capota carros, com intuito de destruir tudo que a destruiu por dentro. Nessa hora, a direção opta por um exagerado uso do vermelho, na iluminação ou no sangue que banha a personagem, tingido-a completamente de rubro, investindo em super closes bastante hitchcockianos no rosto alucinado de Carrie, intensificando o frenesi de seu ataque de ira.

A construção da narrativa de horror em Carrie, A estranha é de uma melancolia magistral, baseando-se em uma realidade não muito distante da de tantos jovens em período escolar: do bullying e do abuso psicológico. É classificado como um filme de terror, mas que para além do aspecto sanguinário e perverso embutido na trama, traz uma abordagem séria, humana, dramática e sentimental sobre a adolescência. A relação conflituosa e opressiva entre Carrie e sua mãe também é um terror real, que De Palma trabalha usando nuances sobrenaturais e uma hiper estilização para acentuar a gravidade dessa relação e suas consequências no amadurecimento da protagonista. A jovem Carrie é levada a tomar atitudes extremas e a desenvolver poderes destrutivos que nada mais são do que mecanismos de defesa e meios de externar seu sofrimento.

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  • Jornalista carioca, editora e crítica de cinema. Tem foco de interesse e pesquisa em cinema de gênero e feito por mulheres.

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